HERANÇA FHC E O NOVO GOVERNO

. Lições esquecidas Está bem que campanha eleitoral é um momento para sonhar e prometer vida melhor. Está certo também que é o momento para se avaliar e criticar o presente. Mas algo escapou dos limites. O candidato do governo, José Serra, ocupou-se minimamente do presente, selecionou alguns temas, saúde e telecomunicações, por exemplo, defendidos como coisas boas do governo FHC, e passou quase todo o tempo prometendo mudanças. Os da oposição bateram igual: o Brasil de hoje é indecente, uma tragédia, uma crise sem precedentes, a pior fase da nossa história. Terra arrasada. Já o futuro, mal podemos esperar o crescimento, os empregos e a justiça social. Não é bem coisa de democracia. Nesta, as mudanças se fazem aos poucos e, sobretudo, cumulativamente. O novo governo, mesmo quando vem da oposição, é uma seqüência, as mudanças de rumo sendo suaves e distribuídas ao longo do tempo. Um bom exemplo da história recente é o do trabalhista Tony Blair, que encerrou uma longa série de governos conservadores. Ele não fez terra arrasada do período anterior. Mas ganhou com um discurso do tipo ?no geral viemos bem até aqui, mas o Partido Trabalhista tem coisa melhor?. Mudanças absolutas, dessas de virar o país de ponta-cabeça, ocorrem nas viradas de regime, quando se derruba uma ditadura. Brasil, 1985, por exemplo, quando assumiu o primeiro governo civil depois de 21 anos de presidentes generais. Era tanto o sentimento de mudança que se passou a anunciar o nascimento da Nova República. A expectativa na sociedade era tão grande quanto a confiança dos líderes civis (os combatentes do regime militar) em operar as mudanças. Não se tratava apenas de restaurar as liberdades, mas também de atender as demandas sociais por melhores salários e empregos. Não se deve esquecer, a propósito, que o regime militar começou a perder sustentação quando foi apanhado por uma grave e persistente crise econômica (o país quebrou em 1982, ficou sem dólares para pagar as contas externas, caiu na moratória, depois em recessão, com a inflação escalando). A Nova República seria o contrário disso tudo. Não foi. Em muitos aspectos, as coisas até pioraram. O que seria o governo Tancredo Neves e acabou sendo o governo José Sarney, na tentativa de atender as demandas sociais e as promessas de mudanças, ressaltadas pela prática democrática, acabou afundando na hiperinflação. Devíamos ter aprendido a lição. Mas como diz Ivan Lessa, a cada 15 anos o Brasil esquece tudo o que aconteceu nos últimos 15 anos. Qual o problema em 85? As restrições de ordem econômica. Não é porque a democracia estava de volta e porque os líderes da resistência estavam no comando, que a retomada do crescimento se tornava uma coisa espontânea. Claro que hoje é diferente. Não estamos derrubando nenhuma ditadura. Mas pelo discurso da oposição, o suposto neoliberalismo da era FHC pode até ter sido coisa pior. (Suposto porque não se pode chamar de liberal, nem neo nem antigo, um governo que aumentou sistematicamente o gasto público e arrecadação de impostos). De todo modo, os candidatos de oposição trouxeram de volta a idéia de que o país volta a crescer se pessoas bem intencionadas, amigas do povo e com boa vontade política assumirem o comando. A propósito, o subproduto dessa idéia é que FHC é um cretino ou vendido. Pois se ele poderia fazer o Brasil crescer aceleradamente e, assim, cravar uma bela posição pessoal na história imediata, e não o fez, só pode ser por algum motivo ruim. Mas as pessoas de mínimo bom senso sabem que não é assim. Sabem que um presidente, em qualquer país, reage às circunstâncias locais e internacionais, estando nisso sua capacidade e sua liderança. E é preciso admitir que os anos FHC conviveram com uma bela seqüência de crises e choques internacionais: México 95, Ásia 97, Rússia e os grandes fundos americanos em 98, o furo da bolha das bolsas americanas e a conseqüente desaceleração do crescimento mundial, a paralisia nos negócios depois do atentado de 11 de setembro de 2001, a crise de confiança com a fraude dos balanços, mais desaceleração mundial. Coloque em cima disso as restrições internas, especialmente a enorme e decisiva restrição imposta pelas contas públicas, neste ponto: há despesas obrigatórias e crescentes, como gastos da Previdência, que vão consumindo toda a arrecadação, deixando quase nada para os demais gastos e investimentos. Acrescente também a baixa poupança nacional, que se traduz em baixo nível de investimento ? e se verifica que não é fácil, quer o presidente seja liberal ou estatizante. Eis aí, portanto. Quanto mais expectativas o candidato tiver estimulado durante a campanha, mais duro será o choque de realidade quando o eleito topar com restrições que só podem ser removidas com trabalho longo, paciente, passo a passo, de pequenos resultados a cada etapa. E maior a frustração dos eleitores. Mas há um ponto a favor do próximo presidente, qualquer que seja (por razões de fechamento editorial, este artigo foi escrito antes de se conhecer o resultado da eleição). Ao contrário do que diz a propaganda de terra arrasada da oposição, muita coisa avançou no país e a economia apresenta vários setores sólidos e com capacidade de crescimento. Como o setor exportador, por exemplo, que todos os candidatos diziam que era preciso estimular com dinheiro e favores públicos. Pois as exportações estão avançando no tal ambiente neoliberal. Ou seja, o eleito terá que se fiar menos nas suas promessas e mais nas boas coisas concretas deixadas pela era FHC. Como deveria ser nas democracias, um governo seguindo o outro.

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