GOVERNO BIPOLAR

. Transtorno governamental bipolar Imagine que você administra uma empresa de biotecnologia e fica sabendo que um pesquisador brasileiro procura um sócio para desenvolver comercialmente uma variedade de café transgênico que promete lucros fabulosos. Você colocaria seu dinheiro nisso? Só se fosse louco. Não há qualquer garantia de que sequer a pesquisa seja legal, muito menos a comercialização. Por outro lado, pode ser que os transgênicos venham a ser permitidos, pois o governo Lula prepara uma nova legislação. Existe uma chance de que os ministros pró-transgênicos saiam vencedores e consigam vender essa proposta ao Congresso Nacional. Nesse caso, é bom estar com o negócio engatilhado. Pensando bem, entretanto, é possível que ministros anti-transgênicos, eventualmente derrotados na cúpula do governo, estimulem ações judiciais contra a nova legislação – e você sabe como o Judiciário pode demorar a resolver. Na verdade, já há uma pendência jurídica sobre a soja transgênica que se arrasta há seis anos. Se bem que, de outro lado, é preciso considerar que o Supremo Tribunal Federal foi bastante rápido ao cancelar, na semana passada, a desapropriação daquela fazenda no Rio Grande do Sul. E se fosse igualmente expedito no caso dos transgênicos? É mais ou menos assim que se sentem os executivos com responsabilidades sobre novos investimentos no Brasil. Qual a alternativa correta: entrar no jogo? Cair fora? Ou ficar em cima do muro, à espreita? A situação é angustiante, porque o investidor está igualmente muito perto de excelentes negócios e de grandes prejuízos. Isso resulta de uma circunstância bem definida por líderes mais à esquerda da ampla base de apoio ao presidente Lula. Trata-se, disseram, de um “governo em disputa” entre as forças reacionárias e as progressistas. Pode não ser tão simples assim – provavelmente não é – mas não há dúvida de que estamos diante de um governo que sofre do “transtorno afetivo bipolar”. Dupla personalidade, se quiserem. Isso tem efeito direto sobre as perspectivas de crescimento econômico. O governo, por uma de suas faces, deposita todas suas fichas na retomada do investimento público. É o lado que pretende utilizar amplamente o dinheiro dos bancos oficiais e dos fundos de pensão de estatais, assim como quer desfazer o acordo com o FMI ou ao menos mudá-lo de modo a reduzir restrições ao gasto público. Já uma outra face do governo lembra que a dívida pública é muito grande e precisa ser contida, de modo que há um limite claro à expansão do investimento do Estado. Para esse pessoal, melhor é criar condições para o empreendimento privado. Assim, um lado fica procurando dinheiro para lançar programas de investimento público de bilhões de reais. Outra turma concentra seus esforços em providências como a nova Lei de Falências, a venda direta de títulos do Tesouro pela internet, a necessidade de respeito aos contratos e a definição de regras claras para os setores estratégicos, de modo a gerar confiança nos investidores privados. Um lado acha que os investimentos em saneamento vão decolar assim que se mudar o acordo com o FMI, de modo a se permitir o endividamento de governos estaduais e prefeituras. Outro lado acha que o setor só vai deslanchar quando se definirem regras que estimulem o investimento privado. Olhando de fora, a gente se pergunta: ora, por que não fazem as duas coisas? Arranjar espaço para investimento público, sem comprometer o ajuste fiscal, é uma boa coisa. E fica melhor ainda se a isso for possível agregar os investimentos privados. Mais ou menos como no caso da soja. Por que não plantamos as duas, a convencional para vender aos ecológicos e a transgênica para o que não estão nem aí para isso, como os chineses? Mas parece que não dá. É característico da personalidade bipolar que um lado iniba o outro, de tal modo que surge uma tendência ao conflito interno e à paralisia. É o que ocorre nos bastidores do governo nessa questão das regras para o setor de saneamento. Os favoráveis ao estrito controle público acabam por bloquear a abertura ao investimento privado. Pode-se dizer quer o pessoal do investimento privado, digamos assim, é mais flexível. Não se incomoda com investimento público, desde que mantido o equilíbrio das contas do governo. Mas o outro lado é mais rígido, teme abrir espaço para qualquer coisa que se pareça com privatização. E então, como ficamos? O fato é que não há investimentos, nem públicos nem privados. Também é certo que, sendo grande a dívida do governo, há restrições objetivas ao gasto público. Não que não se possa aumentá-lo – e é muito possível que o governo Lula consiga mudar alguma regra com o FMI, já que a instituição precisa desesperadamente que o Brasil seja um caso de sucesso. Mesmo assim, o investimento do governo, seus bancos e suas estatais não será suficiente para fazer deslanchar o crescimento. O fator determinante é o investimento privado e este depende, sim, de regras claras, respeito aos contratos e ao direito de propriedade, mas também da confiança subjetiva dos homens e mulheres que decidem a alocação dos recursos. E para ter confiança é preciso que sintam um governo com rumo claro e não em permanente disputa. Rumo não se define com declarações, mas com atitudes concretas. A reforma da Previdência, por exemplo, está sendo uma atitude muito clara. Já a reforma tributária ainda não se sabe se sairá pró-business ou para acertar finanças dos diversos níveis de governo. Também não se sabe como ficará o saneamento, as telecomunicações, a energia, os transgênicos, as invasões de terra e teto, a segurança, etc… Haverá uma psicanálise de governo? Uma psiquiatria política? Publicado em O Estado de S.Paulo, 18/08/2003

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