GOVERNAR É MAIS DIFÍCIL

. O PT na escola de governo Então ficamos assim: há certas reformas que só podem ser aprovadas se o PT estiver no governo. Muita gente sabia ou desconfiava disso, mas agora, depois da Previdência, está provado – e, acreditem, é uma boa notícia. Aumentaram as chances de aprovação de outras reformas que sempre foram tabu no PT, como a trabalhista e a da legislação financeira, de modo a conceder autonomia formal ao Banco Central. Por outro lado, também ficou provado, nos episódios da semana passada, que os petistas, na maioria, não votavam contra quando estavam na oposição só para atrapalhar o governo FHC. Eles de fato acreditavam naquelas histórias de que não havia déficit previdenciário e que a reforma era só arranjo para pagar mais juros aos banqueiros. Tanto acreditavam que o núcleo do governo, comandado pelo próprio presidente Lula e pelo ministro José Dirceu, e a direção do partido, na forte articulação de seu presidente, José Genoino, tiveram um trabalho danado para convencer muitos companheiros a votarem contra o que diziam antes. Para a aprovação da contribuição dos inativos, a bancada do PT só perdeu três votos, dos três radicais que já estão mais para o PSTU. Mas muitos deputados genuinamente petistas votaram com dor na consciência. Numa das tantas reuniões pela madrugada, quando Genoino pressionava os oitos companheiros que haviam se abstido na primeira votação, alguns deles lembraram que o PT havia recorrido ao Supremo Tribunal Federal contra a contribuição. E não uma vez, mas em três ações. Pois é, argumentava Genoino, mas agora tem de aprovar, se não quebra o setor público, o mercado cai em cima do governo e estraga tudo e por aí vai, na fileira de argumentos que eram justamente da era FHC. Nada de estranho nisso. O exercício do governo muda as pessoas e os partidos. Puxando a brasa para a nossa sardinha, já escrevemos neste espaço que um problema da democracia brasileira era justamente o fato de um de seus principais partidos, o PT, nunca ter ocupado o poder federal. Na ausência dessa experiência, o partido mantinha muitas ilusões, como aquela, clássica, que muitas coisas poderiam ser feitas apenas com mais vontade política. Ou ainda aquela outra, que o governo tinha dinheiro e não gastava porque não queria. Logo no início da nova administração, o próprio Lula e muitos dos seus assessores chegaram a pensar que haviam encontrado uma prova dessa tese da abundância de dinheiro público. Descobriram que a Caixa Econômica Federal tinha uns R$ 2 bilhões reservados a financiamentos de obras de saneamento e que esse dinheiro estava aplicado na ciranda financeira, engordando os lucros da instituição, mas desviando de sua função social – como pensaram os novos administradores. Com grande alarde, Lula anunciou a liberação do dinheiro, mas nenhuma prefeitura ou governo estadual apareceu para tomar os empréstimos. Não porque os prefeitos e governadores não tenham vontade política, mas porque estão com os limites de endividamento estourados. Deveriam ter desconfiado de algo, não é mesmo? Então o governo FHC, em ano eleitoral, tinha 2 bilhões de reais ali dando sopa, dinheiro para agradar prefeitos e governadores, e não gastou? Foi muita ingenuidade acreditar que essa grana toda foi economizada com base em princípios monetaristas neoliberais. Agora, a conversa mudou. O governo petista quer mudar os critérios de investimentos e financiamento de prefeituras e governos estaduais, que estão previstos no acordo com o FMI. Só que agora, mais experiente, já deve estar sabendo que muita também queria na administração anterior, negociou com o FMI e não conseguiu. Ou seja, há motivos fortes nessa história e logo o governo Lula estará diante da alternativa: mantém o acordo com o FMI, com o seguro que isso representa no cenário econômico internacional, ou dispensa o FMI para ter mais liberdade de ação, o que equivale a mais liberdade para gastar? Está em curso, portanto, o aprendizado de governo do PT – e está visto que há muitos bons alunos. Mas muitos ainda não passaram de ano, como se viu no episódio da reforma da Previdência. Muitos votaram sim só para atender os apelos da cúpula ou por medo de serem expulsos. Há aulas difíceis pela frente. A reforma tributária não é o caso. Seria se o seu objetivo fosse reduzir a carga tributária, o que significaria uma disposição de reduzir os gastos públicos. Mas nesse quesito, não há partidos liberais no Brasil. Todos, de um modo ou de outro, acabam preferindo ajustar as contas públicas pelo aumento dos impostos. Assim, a reforma tributária, como se temia, entrou pelo perigoso caminho de uma disputa por arrecadação entre governo federal, governos estaduais e prefeituras. Em geral termina com aumento de impostos, o que tem levado muita gente concluir que, a esta altura, é até melhor que não saia reforma nenhuma. Tirante isso, logo os petistas toparão com aulas importantes, a saber: . acordo com o FMI (o atual termina no final do ano e há vantagens inequívocas em renová-lo, talvez maiores que os ônus); . reforma trabalhista (cujo objetivo só pode ser a flexibilização dos direitos trabalhistas, ao menos para pequenas e médias empresas, se o propósito da reforma for incluir os trabalhadores informais, e a redução do poder e competência da Justiça do Trabalho, se houver o propósito de estimular o emprego); . reforma da legislação financeira e autonomia do BC; . parcerias com o setor privado para investimentos em energia e saneamento, regulação desses setores e mais telecomunicações, de modo a facilitar e não dificultar a vida das concessionárias privadas, concessão de estradas a empresas privadas; (trata-se aqui do difícil convencimento de que o setor público não tem como fazer os investimentos necessários, de modo que e deve contar com um papel predominante do setor privado, isso exigindo legislação e regras amigáveis à economia de mercado). E por que os petistas se disporiam a mudar tanto como mudaram no caso da Previdência? Ora, pela mesma razão: sem as mudanças eles não vão conseguir iniciar o espetáculo do crescimento. Publicado em O Estado de S.Paulo, 11/08/2003

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