FUTEBOL, PAIXÃO E NEGÓCIOS

. Futebol numa hora dessas?  Os mercados andaram agitados na semana passada e, embora muitos investidores tenham ficado mais pobres, desenhou-se uma situação rica para análises. Por exemplo: o contraste entre os bons indicadores da economia real (inflação em queda, produção industrial em alta em abril, contas públicas e contas externas em ordem) e o estado deplorável dos mercados, com queda da bolsa e alta do dólar, dos juros e do risco Brasil. Mas, caramba, estamos em plena Copa do Mundo, isso não é hora para uma crise financeira. No fundo, a culpa é da Fifa que levou a Copa para a Coréia do Sul e Japão. O que acontece? Quando os mercados abrem, aqui no Ocidente, os jogos já terminaram. Se o campeonato fosse por aqui, os operadores estariam entretidos nos jogos, nos bolões, nos contratos futuros de artilheiro, e não teriam tempo nem disposição para especulações e/ou pânicos. Vamos, portanto, fazer a nossa parte, deixar de lado a crise e tratar de futebol. Mas como esta é uma página econômica, esse será o viés. O que não é difícil. Os números são meio chutados (desculpem), mas se calcula que o negócio do futebol represente, no mundo, cerca de US$ 220 bilhões por ano. Trata-se do faturamento dos clubes, das ligas, federações nacionais e regionais e da Fifa com a venda de ingressos, direitos de televisão e patrocínios comerciais, as principais fontes de receita dos clubes e seleções. A televisão é parte essencial do negócio, não apenas pelo dinheiro que as emissoras pagam para transmitir as partidas. A visibilidade proporcionada aumenta o público do esporte pelo mundo afora e, assim, eleva o valor dos patrocínios. E nesse aspecto, o horário oriental mostrou-se uma poderosa ajuda. Quando se definiu a sede da Copa 2002, empresas tradicionalmente ligadas ao futebol e suas agências de propaganda protestaram. Que audiência se conseguiria nas madrugadas e manhãs ocidentais? Pois a julgar pelo que aconteceu no Brasil, as pessoas acordaram mais cedo e, assim, aproveitaram o horário livre de trabalho – porque só uma minoria já está no batente a essa hora. Dados preliminares, referentes a São Paulo, mostraram que a audiência de Brasil e Turquia, seis da matina, superou a do jogo Brasil e Holanda, da Copa de 98, que foi às duas da tarde de um dia útil e marcou, então, um recorde de público de telinha. Nesse sentido, a Copa no Oriente acabou sendo melhor. Agregou para o negócio da propaganda um horário que era morto ou muito barato. Se o leitor e a leitora estão pensando que isso só acontece no Brasil, erraram. O futebol é paixão mundial, de verdade. Em Londres, na manhã da última sexta, um grito de gol tomou toda a cidade quando David Beckham fez um a zero para a Inglaterra contra a Argentina. Em Buenos Aires, foi um silêncio de doer. Nos dois lados do mundo, estava todo mundo diante da tevê. Eis aí, o futebol, invenção dos ingleses, é hoje um fenômeno global. Visto assim, como uma paixão e um produto, pode-se até dizer que o faturamento anual de US$ 220 bilhões é pequeno. Com esportes de apelo muito menor, quase sem graça quando comparados ao futebol, os americanos fazem proporcionalmente muito mais dinheiro. O problema é que a paixão é a força e a fraqueza do futebol. Fatura-se muito dinheiro com o futebol e perde-se mais ainda. Deixemos de lado os nossos clubes e campeonatos, cuja administração é uma mistura de incompetência primária e corrupção. Tratemos dos grandes clubes europeus, os mais sólidos economicamente. Pois poucos são lucrativos. Mesmo entre estes, os lucros caíram muito nos últimos anos. O Manchester United, considerado o time mais rico do mundo, faturamento de US$ 200 milhões/ano, tem ações em bolsa de valores. Há dois anos, seu valor de mercado alcançava US$ 1,4 bilhão. Hoje, caiu para pouco mais de US$ 400 milhões. O Real Madrid, eleito pela Fifa como o clube do século 20, afundou-se numa dívida de US$ 430 milhões, da qual só escapou com a venda de seu centro de treinamento no centro da capital espanhola. Com uma pequena ajuda da prefeitura, que mudou regras de zoneamento para ampliar as possibilidades de construção no local e valorizar o terreno. ual o problema com esses dois clubes? Os gastos excessivos com a contratação e salários dos jogadores. O Real Madrid fez a mais cara contratação da história do futebol: US$ 64 milhões por Zidane. E o craque ganha perto de US$ 1 milhão por mês, algo parecido com o salário de Beckham, do Manchester. Vale a pena pagar todo esse dinheiro? Vale. Segundo um estudo da consultoria britânica Deloitte Touche Sports, citado na última edição da revista The Economist, os clubes que pagam os mais altos salários são justamente os que obtêm os melhores resultados. É verdade que às vezes falha e um clube menor leva a taça. O próprio Real Madrid, que montou um supertime para o ano de seu centenário, com o declarado objetivo de ganhar tudo – o campeonato espanhol, a Copa do Rei e Copa dos Campeões da Europa – levou “apenas” este último título (e com um golaço de Zidane, após cruzamento de Roberto Carlos, que também está entre os mais bem pagos do mundo). Mas os clubes espanhóis que cresceram também investiram pesado em seus atletas, embora menos que o Real. Em resumo, tirante as exceções, considerando-se prazos mais longos, os times com mais craques e, pois, os mais caros, levam mais – como aliás sabe qualquer comentarista de mesa de bar. De todo modo, se é um negócio, deveria ser assim administrado, com as despesas dentro do orçamento. E aqui entra a paixão. Em todo o mundo, os clubes são dirigidos ou, mais grave, são de propriedade de torcedores. São executivos e empresários que tocam seus negócios extra-futebol com muita eficiência. No clube, porém, torram o que for necessário para ter o craque que decide jogos. De outro lado, há problemas para se elevar as receitas, por questões políticas. Por exemplo: governos pressionam os clubes e as ligas quando estes elevam o preço dos ingressos. Outro caso: os grandes clubes gostariam que seus jogos fossem transmitidos apenas ou preferencialmente na tevê paga, o que lhes permitiria cobrar mais caro. De novo, os governos não deixam. O futebol é popular demais, há muito dividendo político envolvido. Na União Européia, os governos fizeram pressão para que os jogos da Copa fossem para a tevê aberta. Na Inglaterra, a lei manda que a final do campeonato local seja obrigatoriamente transmitida por tevê aberta. Na Espanha, também por lei, um determinado número de jogos passa necessariamente na tevê aberta. Eis aí, as dificuldades para se administrar racionalmente o futebol. Como a paixão pelo jogo, também este caso não é coisa de brasileiro. E chega de conversa que tem jogo na tevê, aberta, pois claro. Publicado em O Estado de S.Paulo, 10/06/02

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