O que adianta fazer a frase ‘saúde não é mercadoria’ se tudo o que se precisa para manter a saúde tem que ser pago nos mercados?
A presidente do STF, Cármen Lúcia, aprecia literatura. É bom. Revela ter sentimentos humanistas, atributo essencial para uma juíza. Pena que não se dedique tanto ao conhecimento ainda que básico de teoria econômica. Evitaria um tipo comum de equívoco: uma frase bonita que não diz nada ou, pior, não tem o menor sentido ou, pior ainda, revela um erro essencial.
“Saúde não é mercadoria, vida não é negócio, dignidade não é lucro” — escreveu a ministra em decisão que suspendeu uma resolução da Agência Nacional de Saúde (ANS) sobre sistema de cobrança dos planos de saúde.
Você pode não conhecer o conceito de mercadoria (os conceitos) mas reconhece uma quando a vê. Um automóvel na concessionária é certamente uma mercadoria. Assim, vamos pela prática ilustrada.
Não se encontra o produto saúde numa prateleira de supermercado, mas é preciso comprar um monte de mercadorias, produtos e serviços, para ter saúde: comida, um bom lugar para morar, água, luz elétrica, roupas e… consultas médicas, vacinas, remédios, talvez uma cirurgia.
Ou seja, o que adianta fazer a bela frase “saúde não é mercadoria” se tudo o que se precisa para manter a saúde tem que ser pago nos mercados? Inclusive no mercado de planos de saúde.
Seria a doença uma mercadoria? Seria esse o sentido, crítico, da frase da ministra? Não deve ser. Também não faria o menor sentido. Não há um mercado de doenças — com o perdão da obviedade — mas se você não puder pagar por remédios, vai adoecer. De novo, tem mercado aí.
Dirão: mas quem é atendido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) não paga nada e, sendo tudo de graça, não se encontra aí qualquer relação com o mercado.
Outro equívoco grave.
Primeiro, que não é de graça. Todos os brasileiros, saudáveis ou doentes, pacientes ou não do sistema público, pagam impostos para financiar o SUS. Além disso, o SUS compra remédios, contrata e paga médicos e enfermeiros, aluga serviços de hospitais particulares — e eis o mercado aí de novo.
“Vida não é negócio” — acrescenta a ministra.
A provocação aqui é tentadora. Assim: a Constituição garante o direito à vida (o que significa que o brasileiro não pode morrer, se divertia Roberto Campos), mas a lei não paga a vida; você precisa estudar, trabalhar e comprar um monte de coisas para viver. Logo, tem muitos negócios em torno da vida humana, inclusive, por exemplo, uma cara e complexa terapia intensiva que evita mortes.
E a ministra que nos desculpe, mas a morte é um negócio. Você ou sua família terão de pagar pelo seu enterro de primeiro ou segunda classe.
“Dignidade não é lucro” — arremata a ministra. Não dá para entender. Estaria querendo dizer que o lucro é indigno e que o prejuízo é digno? É tão absurdo que não se pode nem cogitar que isso tenha passado pela cabeça de Cármen Lúcia.
Talvez a ministra esteja querendo nos dizer que é indigno ter lucro nos negócios — opa! desculpem — nas atividades de saúde. Mas também não faz sentido. Se um hospital privado não tiver lucro simplesmente vai quebrar. Ao contrário, lucrando, pode acumular capital, contratar mais gente, ampliar os serviços, ganhar produtividade e, pois, garantir saúde para mais pessoas.
Talvez a ministra estivesse querendo dizer que é indigno quando uma instituição privada de saúde “rouba” nos procedimentos, faz um cateterismo, por exemplo, e cobra por transplante. Mas isso é tão ilegal quanto o açougueiro entregar coxão duro e cobrar por filé.
A literatura da presidente do STF suspendeu uma resolução da ANS que regulava um sistema de cobrança dos planos de saúde. A questão essencial é esta: quanto os planos podem cobrar dos usuários por contrapartida em consultas e procedimentos. No caso, a ANS regulou que os planos podem cobrar até 40% do valor do atendimento.
Isso envolve lógica econômica, para um enorme mercado. São 47 milhões de brasileiros que preferem fazer um contrato privado e pagar operadoras privadas, em vez de confiar no SUS e nas garantias constitucionais — obviamente, não cumpridas, portanto.
A questão econômica é a seguinte: quanto maior a contrapartida, menor o custo do plano. Exemplo: um jovem cheio de saúde, atleta, raramente precisará ir ao médico. Pode, pois, pagar uma mensalidade bem baratinha, topando pagar 50% de uma consulta, sabendo que talvez nem precise por mais de ano. Além disso, o sistema de contrapartida ajuda a prevenir o abuso (por exemplo, fazer mais exames do que o necessário porque é “de graça” e/ou já está pago mesmo).
Já quem sabe que vai precisar de mais cuidados comprará um plano completo, sem contrapartida, obviamente mais caro. Em boa economia: a operadora terá lucro com o jovem saudável e gastará dinheiro com o idoso doente. Mais, ganhando com o jovem pode equilibrar as contas e cobrar menos dos outros.
Entidades de suposta defesa dos consumidores dizem que as operadoras vão obrigar todos os usuários a aderir ao plano com contrapartida. Assim, querem até impedir as contrapartidas. Resultado: o plano fica muito caro para os jovens, reduzindo o mercado, já que ganham menos, e muito mais caro para os mais velhos e necessitados.
É o que dá essa (falsa) literatura.
Carlos Alberto Sardenberg é jornalista