. Tempo para a Argentina
Eis uma sugestão: suspender o debate de política econômica no Brasil enquanto se observa a situação na Argentina. Há uma escalada da inflação por lá e o presidente Nestor Kirchner, com sua nova ministra da Economia, Felisia Miceli, assegura que não vai combatê-la com os ?métodos neoliberais do FMI?, isto é, com a elevação da taxa básica de juros, muito menos com a valorização do peso, a moeda local.
Portanto, a gente aqui poderia dar um tempo e verificar se funciona ou não o método Kirchner. A primeira parte já está em marcha: ataques aos empresários e grandes grupos econômicos, considerados ?culpados? pela alta de preços. Para o presidente, são duas culpas: ganância e conspiração política da direita para desestabilizar seu governo.
Os primeiros alvos do governo foram os supermercados e a indústria de alimentos. Denunciados publicamente pelo presidente e ameaçados pelos piqueteiros, esses setores concordaram em fazer acordos de redução de preços de produtos básicos.
Já no caso do segundo alvo não houve acordo. Ao contrário, a disputa radicalizou. A ministra reuniu-se com associações dos fazendeiros, frigoríficos e exportadores de carne, com o objetivo de aumentar o abastecimento interno e reduzir preços.
Não deu. Os produtores alegaram que nesta época do ano o gado ganha pouco peso, de modo que é antieconômico vender grandes quantidades. E a exportação dá mais dinheiro, já que o dólar está valorizado.
Aliás, a moeda local desvalorizada é parte oficial da política econômica da Argentina. E fonte de uma divergência com o FMI, para o qual o dólar está artificialmente valorizado, pela prática do Banco Central de intervir no mercado e comprar a moeda americana no volume necessário para manter a cotação em torno dos 2,90 pesos.
Nessa cotação, é mais vantajoso exportar a carne. Mas isso agora não pode, diz o governo, que há duas semanas aumentou de 5% para 15% o imposto cobrado sobre as exportações. E ameaça aumentar de novo para 25%, caso a carne não caia de preço nos açougues locais.
Produtores e exportadores prometem reagir às pressões do governo com ?caminhonaços?. O governo contra-ameaça, dizendo que sabe onde encontrar o gado.
Para os brasileiros que não são tão jovens, isso lembra alguma coisa: o esforço do governo Sarney, em 1986, para pegar boi no pasto. Policiais federais, em helicópteros e camburões, fazendo o papel ridículo de caçar meia dúzia de reses num momento de desabastecimento nacional. Onde o preço estava tabelado, nos supermercados, não havia carne; nos açougues ?informais?, sobrava carne, a preços não tabelados. Foi um dos grandes vexames nos estertores do Plano Cruzado.
Na Argentina de hoje, mesmo nos setores em que houve acordo, sobram conflitos. Associações de consumidores dizem que os produtos cujos preços foram reduzidos desaparecem das gôndolas. Os donos de supermercados dizem que é lógico. Os produtos ?tabelados? estão mais baratos, os consumidores aproveitam por não saberem até quando vai isso.
E já aparece o outro lado do conflito. Com inflação acima de 12% ao ano, os sindicatos reivindicam reajustes salariais. A ministra Miceli disse que os trabalhadores merecem reajustes justos, pois a política econômica baseia-se no aumento do poder aquisitivo da população, de modo a ampliar o mercado e, assim, estimular os empresários a aumentarem a produção.
Para evitar a espiral salários/preços, o governo está sugerindo um contrato de contenção de um ano entre sindicatos de trabalhadores e associações de empresários.
Essas também são idéias conhecidas por aqui. Falava-se disso no tempo do Cruzado 2. Economistas, sindicalistas e empresários de algum modo próximos ao PT também sustentavam que o acordo de preços e salários era a alternativa ao aumento de juros. Lula propunha na campanha as câmaras de negociação. Depois, esqueceu tudo e tocou juros na inflação.
O problema de fundo é que não há novos investimentos na Argentina. Na longa crise, o país reduziu sua atividade econômica. Se produzia 100, passou a produzir 65. Com o início da recuperação, a atividade voltou a crescer, mas com base na antiga capacidade produzida, já prejudicada. Durante anos, por exemplo, não houve investimentos modernizadores na indústria.
E mesmo na recuperação, os investimentos não voltaram, por uma razão simples: os empresários não têm confiança numa política econômica que é hostil ao capital e não respeita contratos. Quem vai investir em frigoríficos, por exemplo? Assim, logo a produção chega ao limite, esgota-se a capacidade, vem a inflação. Aliás, inflação ainda empurrada pela política do peso desvalorizado, que torna mais caro tudo que é importado, tem componente importado ou tem cotação em dólares, como a carne, aliás.
Dá inflação e confusão. O peso desvalorizado é para estimular exportação. Mas aí vêm o preço alto e o desabastecimento do mercado interno. O governo coloca impostos sobre as exportações, reduzindo as margens dos produtores nos dois mercados.
Outro desequilíbrio: o governo taxa produtos importados do Brasil, mais baratos, para proteger a indústria local. É lenha no fogo da inflação. Seguem-se ameaças aos empresários. Por algum tempo até funciona. Mas se fosse possível combater inflação com os fiscais ? lembram-se dos fiscais do Sarney? ? não teria havido hiperinflação ao Brasil.
Mas quem sabe Kirchner tem alguma novidade? Faz algum tempo, aqui no Brasil, o pessoal que se opõe à política econômica estava animado com os vizinhos: deram calote na dívida, derrubam juros, valorizam o dólar e crescem 10%. E agora? O que fazer com a inflação? Alguns estão dizendo: ora o que tem inflação de 12% ao ano?
O que tem, os argentinos já estão sentindo. Vamos observar. Para os mais jovens, talvez seja útil. Publicado em O Estado de S.Paulo, 12/dezembro/2005