Eu vi o Rei
Carlos Alberto Sardenberg
Vi Pelé jogar. E concordo com Nelson Rodrigues. Pelé sabia que era o Rei. Mais: os que jogavam a seu lado ou contra ele também sabiam que ali estava o melhor de todos, capaz de jogadas impossíveis para os mortais.
Mais ainda: a torcida sabia. Todas as torcidas. No estádio, era um espetáculo: quando Pelé dominava a bola no meio-campo e virava o corpo na direção do gol adversário, as pessoas se levantavam na expectativa.
Reparem: Pelé estava a meio-campo do gol, vários adversários à frente, e a torcida já de pé. Quando ele partia em velocidade, as pessoas já estavam comemorando.
Mesmo que não saísse o gol, a gente podia dizer: eu vi.
Meu gol preferido é da Copa de 1958, contra o País de Gales. Pelas circunstâncias. Zero a zero, jogo eliminatório, segundo tempo. Pelé está dentro da área, de costas para o gol. Pede a bola. Recebe no peito, deixa cair, um toquinho sobre as pernas do marcador e coloca no canto.
Ele faria outros gols espetaculares e decisivos. Mas a gente já sabia que era o Pelé. Em 1958, era um rapaz de 17 anos que se apresentava ao mundo. E todos entenderam: era muito mais que um gol de Copa.
Ou, se poderia dizer: vocês ainda não viram nada.
Governo Lula
Voltando à nossa seara, vamos dar por entendido que o governo Lula terá dificuldades com:
- cenário externo desfavorável, em um mundo com inflação elevada, juros altos e desaceleração da atividade econômica;
- cenário interno complicado nos mesmos itens, inflação, juros, desaceleração;
- formação de maiorias na Câmara e no Senado.
Não é pouca coisa, mas cabe acrescentar uma dificuldade menos comentada: a administração interna do governo. Burocracia, gestão – não é assunto tão interessante, mas crucial.
Um ministério tem secretarias, coordenadorias e departamentos. Como acomodá-las nos 37 ministérios, sobretudo depois do vendaval de incompetência e má fé do governo Bolsonaro?
Fernando Haddad e Simone Tebet têm óbvias diferenças no pensamento econômico. Daí deriva uma questão prática: como se entenderão na gestão do orçamento?
Com base em formatos já aplicados em diversos governos, o Ministério do Planejamento tem a Secretaria de Orçamento, que prepara o projeto de orçamento enviado ao Congresso e, depois de aprovado, acompanha sua realização. Já a Fazenda tem a Secretaria do Tesouro, o caixa do governo, que faz os pagamentos aos ministérios, os quais, de sua vez, gastam nos programas e obras.
Assim, se um ministro quer liberar uma verba, passa primeiro no balcão do Planejamento, onde apanha a autorização, e depois na Fazenda, para receber o dinheiro.
Por trás do roteiro burocrático, está a escolha de prioridades: gastar mais em pessoal ou em obras? O que vem na frente, os recursos da Funai ou da Sudam? Isso é economia e política – ministros fortes politicamente sempre arranjam mais dinheiro.
Se foi difícil para Lula dividir o Ministério, como ele disse, será ainda mais complicado arbitrar as demandas dos ministros e da ampla coalizão.
Sim, Lula já fez isso, mas as circunstâncias mudaram. Ou seja, a questão principal neste início de governo será arranjar a burocracia: onde fica esta ou aquela secretaria? Em qual prédio? Com quais recursos (assessores, por exemplo, ou cargos em DAS)?
Pode parecer coisa pequena, mas sem essa organização o governo simplesmente não anda. Além dos grandes arranjos, a nova administração pode encalhar em disputas burocráticas.
E para continuar no tema da política econômica: sempre que houve a divisão entre Fazenda e Planejamento, a primeira foi dominante. Não se gasta um centavo sem passar pela poderosa Secretaria do Tesouro. Isso significa que Simone Tebet, terá que arranjar funções e poderes em áreas não relativas à política econômica.
Gestão das estatais costumava ser uma função do Planejamento. Mas a ministra terá autoridade sobre uma Petrobras, por exemplo, gigante dirigido por um petista?
Lula foi praticamente obrigado a montar um governo amplo e diverso. Conseguiu. Agora começa a parte mais trabalhosa, colocar a geringonça para funcionar.