Entre o capital e o social (2)

No segundo artigo da série iniciada em 14/05/07, discute-se como conciliar o lucro do `big pharma` com o preço social. Entre o capital e o social (2)
Carlos Alberto Sardenberg

Quando o HIV e a AIDS foram identificados, a doença era devastadora. Nos anos 80, os pacientes, em média, não resistiam mais que 18 meses depois da entrada em ação do vírus. Além disso, esse curto período de sobrevida era um sofrimento atroz. Os doentes passavam a maior parte do tempo incapazes de qualquer atividade.
Hoje, a sobrevida média é de oito anos, isso incluindo os doentes de países mais pobres e com poucos recursos. Nos países de renda maior, os doentes vivem bem mais. Além disso, a sobrevida é de muito maior qualidade, com os pacientes mantendo-se ativos e trabalhando.
Remédios eficazes é a explicação, medicamentos pesquisados, testados e finalmente colocados no mercado pelas grandes multinacionais, o ?big pharma?. Foi impressionante a velocidade com que os laboratórios chegaram aos novos remédios, mas também tem explicação: montanhas de dinheiro.
Os laboratórios são privados. Foi uma decisão dos acionistas colocar seu dinheiro nessas pesquisas porque a expectativa de retorno era extraordinária. Tratava-se de descobrir produtos essenciais para um mercado, com o perdão da palavra, obrigatório, sendo que o lucro, também com o perdão, seria tanto maior quanto mais rápido fosse o lançamento dos novos remédios. Assim, estimuladas pela possibilidade de retorno e pela competição feroz, colocaram-se em marcha as forças do capitalismo.
Imaginemos que o vírus atingisse apenas as populações dos países mais pobres do mundo. Os remédios não teriam sido desenvolvidos porque os pacientes não teriam dinheiro para comprá-los. E os governos também não teriam os recursos ou não estariam dispostos a gastar fortunas do orçamento público para isso.
Sejamos francos, embora possa parecer uma conversa insensível. O fato da AIDS atingir classes médias e ricas dos países desenvolvidos foi um fator decisivo para estimular a pesquisa do ?big pharma?.
Temos aqui, portanto, mais uma demonstração do conceito ?não há almoço grátis?. Um novo medicamento custa dinheiro e só haverá investimento privado se houver mercado. Não por acaso, as doenças e epidemias que atingem apenas os mais pobres são as que recebem menos recursos em pesquisas.
Como resolver essa, digamos, falha do mercado? Um caminho é o investimento público, dos governos e dos organismos internacionais. Mas não é apenas no Brasil que o setor público tende a ser menos eficiente e menos produtivo.
Por isso, economistas têm sugerido que, em vez de gastar dinheiro em pesquisas ? muitas vezes, desperdiçar dinheiro ? os governos e organismos internacionais estimulassem o interesse e a competição entre as multinacionais. Assim, um governo, um conjunto de governos ou a Organização Mundial da Saúde anunciariam que pagariam tantos dólares por dose de vacina contra uma determinada epidemia. Ou seja, o setor público criaria um mercado.
Outro caminho é quebrar as patentes dos laboratórios. O governo produz ou autoriza a produção de cópias dos produtos desenvolvidos pelo ?big pharma?. É um caminho limitado, claro, pois garante o acesso apenas a medicamentos já existentes. E obviamente desestimula a pesquisa. Se os governos generalizarem a prática de quebrar patentes, o resultado será a paralisia dos novos investimentos.
Tanto é assim que as regras internacionais determinam que um governo pode quebrar patentes ou decretar licenciamento compulsório em situações de emergência nacional ou extrema urgência.
Além disso, no caso específico da AIDS, estabeleceram-se fórmulas pelas quais as multinacionais dão descontos no preço dos remédios, conforme certos critérios, como nível de renda do país e grau de incidência da doença.
É uma tentativa de conciliar o interesse dos laboratórios privados com as necessidades dos países mais pobres. Trata-se de conciliar o lucro com o social. Ou seja, os laboratórios precisam ganhar dinheiro num mercado para oferecer preços sociais em outro.
De modo simples e direto: o sistema só funciona se os doentes dos países mais ricos pagarem pelos companheiros de infortúnio dos mais pobres.
Quando assinou o decreto de licenciamento obrigatório do Efavirenz, medicamente anti-AIDS do laboratório norte-americano Merck Sharp&Dome, no início de maio, o presidente Lula tratou de enquadrar a medida naqueles requisitos internacionais. É controvertido ? o Brasil é país de renda média, não pobre ? mas defensável nos tribunais, mesmo porque há no mundo todo um viés contra o ?big pharma?.
Nem um pouco defensável, porém, foi o discurso de Lula. Disse ele: ?não é possível alguém ficar rico com a desgraça dos outros?. Ora, não se trata disso, mas de remunerar investimentos. Coisa aliás que o governo brasileiro continuará fazendo, pois vai comprar um genérico do Efavirenz produzido por laboratórios indianos ? que são empresas privadas, não de caridade. Os desgraçados brasileiros não vão enriquecer os donos da patente, mas os donos da fábrica na Índia, que vendem mais barato porque não investiram na pesquisa.
E depois vem o governo dizer que pretende desenvolver a inovação na indústria farmacêutica local. Há bons laboratórios no Brasil e cientistas de primeiro time. Mas dependem de definição de prioridades e de verbas alocadas pelos políticos de plantão.
O senhor e a senhora esperariam remédios milagrosos?
Publicado em O Estado de S.Paulo, 21 de maio de 2007

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