ECONOMIAS EM CRISE DE CONFIANÇA

. Desconfiança   “Confiança, o senhor sabe, não se tira das coisas feitas ou perfeitas, ela rodeia, é o quente da pessoa” (Riobaldo, em Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa). Uma economia que cresceu quase 6% no primeiro trimestre deste ano; mostrou ganhos de produtividade por quatro trimestres seguidos; estabilizou a taxa de desemprego; propiciou ganhos de renda para as pessoas, que aumentaram seus gastos no shopping; funciona com uma taxa básica de juros de 1,75% ao ano, com inflação rastejando na casa de menos de 2% anuais; e, finalmente, uma economia na qual as famílias estão comprando casas, não parece estar em dificuldades. Esse quadro, o leitor e a leitora já perceberam, resume o desempenho da economia americana no início deste ano de 2002: uma clara e sólida recuperação depois da desaceleração ocorrida entre o final de 2000 e o terceiro trimestre de 2001. Parecia claro, também, que se deixava para trás o trauma do atentado de 11 de setembro de 2001. Uma economia em tal estado, e sendo a maior do planeta, deveria atrair investimentos locais e estrangeiros, especialmente no movimentado mercado de ações. Entretanto, desde abril último, os índices Dow Jones e Nasdaq só fazem cair. Na última sexta, por volta da hora brasileira do almoço, o Dow caía abaixo dos 8.200 pontos, recorde de baixa verificado em 21 de setembro do ano passado, quando o mercado reabria depois do atentado. O Nasdaq também seguia caindo, operando na faixa de 1.340 pontos, também próximo dos níveis pós-atentado. Mais ainda: em comparação com os números de março deste ano, os últimos resultados equivalem a perdas de mais de 20% no caso do Dow Jones Industrial (média das maiores empresas) e de mais de 30% na Nasdaq (média as empresas da área de tecnologia, da Nova Economia). Isso foi consequência da forte venda de ações e da redução de investimentos estrangeiros nos EUA, fator este que determinou a queda na cotação do dólar em relação ao euro e ao iene. Também as taxas de juros anuais cobradas das empresas americanas consideradas de risco subiram mais de cinco porcentuais nos últimos meses, sendo que se reduziram no geral os empréstimos concedidos pelos bancos. E entretanto, nada havia acontecido de ruim na economia real. Essa deterioração começou no mercado financeiro, com causa precisa e determinada: a perda de confiança do investidor na contabilidade das grandes companhias, na sequência dos escândalos de fraude nos balanços tornados públicos. A coisa continua. Na última quinta-feira estourou o caso AOL-Time Warner, emblemático sob vários aspectos. No auge da euforia dos mercados, e sendo a AOL a maior das companhias formadas na Internet, as duas empresas concluíram uma fusão de US$ 165 bilhões, com base em troca de ações supervalorizadas e com perspectivas de lucros espantosos. Os lucros, porém, não se materializaram por causa do estouro da bolha da Nova Economia e da desaceleração da economia americana como um todo. Na falta de lucros reais, segundo denúncia do jornal Washington Post, a  megaempresa turbinou os balanços e apresentou aos acionistas lucros contábeis. A companhia negou, mas no mesmo dia caiu o principal executivo. Já desconfiado, o mercado derrubou mais um pouco a cotação das ações. E o problema é que mercado de ações nos Estados Unidos não é brincadeira. É ali que as empresas obtêm capital barato com a venda de ações. É ali que as famílias colocam parte importante de sua poupança e dos fundos para aposentadoria. Perdas nesse mercado, portanto, afetam as duas pontas da economia real, a capacidade de investimento das companhias e de consumo das pessoas – consumo esse que responde por dois terços da economia americana. Sendo os US$ 10 trilhões do produto americano equivalente a mais do dobro da segunda economia, a do Japão, que se arrasta entre a recessão e o crescimento medíocre, pode-se imaginar o estrago que os EUA espalham pelo resto do mundo. Na última sexta, as bolsas européias fecharam perto das baixas históricas. Detalhe: o que a crise tem de bom para os Estados Unidos é ruim para todos os demais países. O dólar desvalorizado barateia as exportações e encarece as importações americanas. Ora, a Europa tirou boa parte de seu crescimento recente com a exportação especialmente para os EUA. E a Ásia, em grande parte, vive de vender para os americanos. Eis aí, como a fraude nos balanços se torne crise de confiança no mercado financeiro e transborda para a economia real nos Estados Unidos e, de lá, para o texto do mundo. Se o pânico se instala nos mercados financeiros, toda a recuperação real pode ser abalada com a retração do consumo e dos investimentos. Contra uma recessão, os bancos centrais têm a arma de reduzir os juros, tão bem utilizada por Alan Greenspan, o presidente do Federal Reserve, Fed. Contra uma crise de confiança, o que fazer? O pessoal lá está se esforçando. O Congresso discute leis para reforçar as regras dos balanços e das auditorias e para aumentar as penas dos executivos que incorrem na “ganância criminosa”. Empresas culpadas juram nunca mais fazer isso. As inocentes abrem suas contas e balanços para mostrar que estão limpas. Essa lavagem de roupa suja em público já é meio caminho andado. A outra metade depende do imponderável, da recuperação da confiança, “o quente da pessoa”. O consolo está na história. Não é a primeira vez que o capitalismo americano é apanhado em práticas não-convencionais. Na verdade, nos períodos de euforia, em que todos ganham muito, ninguém liga para essas heterodoxias, como a tal “contabilidade agressiva” inventada por contadores, auditores e executivos. Quando a bolha estoura, vêm o xerife, os promotores, o rigor da lei. Na próxima euforia, começa tudo de novo. A esperança é que, a cada rodada, as leis sejam aperfeiçoadas. Às vezes acontece, às vezes não. E o Brasil com isso? Pois acreditem, guardadas as devidas e enormes diferenças, também fomos apanhados por uma crise de confiança, aliás, duas, a deles e a nossa. Mas isso é assunto para a próxima. Em O Estado de S.Paulo, 22 de julho de 2002

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