ECONOMIA E ELEIÇÕES

. O Estado de volta Época de eleições é para isso mesmo: cada setor da sociedade apresenta sua visão do país e a política nacional que daí resulta. Claro que tem clientelismo: pessoas, empresas, setores, grupos que fazem negócio com os candidatos, isto é, votos em troca de vantagens particulares. Mas não é a regra, nem é o mais importante nesse processo de formação do novo governo. Ao contrário do que dizem certos candidatos e muitos analistas, esta eleição presidencial tem permitido que diversos setores apresentem seu modo de ver o futuro. Certamente, há interesses específicos quando, por exemplo, a indústria nacional reclama proteção e créditos especiais; quando muita gente exige que a Petrobrás contrate aqui mesmo a construção de suas plataformas; ou quando a agricultura pede uma ação mais agressiva do governo para abrir mercados internacionais. Realizadas, tais providências vão beneficiar setores ou mesmo algumas empresas e, pois, os seus trabalhadores, mas a história não se esgota aí. Por trás de tudo há uma visão política, segundo a qual a indústria nacional, por exemplo, é estratégica para o desenvolvimento sustentado do país. Tome-se o caso da indústria automobilística, talvez o melhor exemplo de um setor que consegue arrancar vantagens do governo em quase todos os países, há muito tempo. Houve inúmeros episódios de corrupção pelo mundo afora, mas certamente, hoje ao menos, essa não é a regra. A verdade é que a indústria automobilística sempre consegue forte apoio social e político. É status pessoal tem um carro novo, assim como é status social e político ter uma fábrica de automóvel na região. Assim, os governos concedem subsídios e incentivos fiscais porque a maioria da sociedade quer. Os economistas vivem fazendo cálculos para mostrar que frequentemente o dinheiro público gasto com uma fábrica é maior que o retorno proporcionado por ela, mas vá contar isso à população da região do empreendimento. Tem a ver com a democracia. Em um regime autoritário ou em algum tipo moderno de despotismo esclarecido, se poderia convocar os sábios (economistas?) para determinar o que é melhor para o país independentemente dos interesses particulares. Na democracia é mais trabalhoso, todo mundo dá palpite, vem muita besteira e picaretagem junto com as demandas legítimas, de modo que é preciso arrumar isso tudo numa política nacional coerente. Eis a grande questão, como fazer essa composição. O pensamento liberal clássico diz que basta a liberdade para que cada um lute por seu interesse particular. Nesse processo, mediado pela mão invisível do mercado, forma-se o interesse nacional e coletivo. Mas nenhum dos quatro principais candidatos presidenciais acredita nisso. Lula e Garotinho vêm da esquerda socialista que via no mercado o adversário, não o meio de crescimento econômico. Ciro Gomes, não se sabe. Já transitou por aqui e ali, tem ao seu lado liberais puros, como o economista José Alexandre Scheinkman, mas também ex-comunistas como Roberto Freire, que se adaptou aos novos tempos mas certamente não perdeu sua desconfiança em relação ao mercado. José Serra vem de uma tradição de esquerda democrática européia, para a qual o regime econômico correto é o capitalismo e seu mercado, mas sob severo controle público e forte intervenção estatal em diversos setores. Todos tiveram que se adaptar à onda liberal e globalizante, mas claramente a contragosto. Os últimos anos de crises e baixo crescimento econômico global propiciaram a revanche. Embora a realidade concreta mostre que os países que se safam melhor das atuais dificuldades são justamente aqueles que mais avançaram nas reformas liberais, está valendo mais a propaganda: tudo passou a ser culpa daquela onda. A consequência é mais Estado. Claro que há diferenças importantes entre os quatro principais candidatos. Serra, por exemplo, é certamente o mais comprometido com o capitalismo, o mercado, a estabilidade fiscal, as metas de inflação, o acordo com o FMI. Outros também embarcaram no acordo com o FMI, mas claramente porque não tinham outra alternativa. Mas o próprio Serra lançou a idéia de “ativismo do governo” para recuperar de algum modo a tradição de intervenção estatal na economia. E nenhum dos candidatos propõe, por exemplo, novas privatizações importantes. Com isso, o fato é que cada candidato acredita que seu governo fará a mediação entre os diversos setores, embora de modo diferente. Serra, por exemplo, acredita que, com o “ativismo”, conseguirá compor as coisas na sociedade e na economia real. Vai distinguir entre setores livres e setores controlados, não terá escrúpulos em impor controles de preços específicos ou aplicar proteção a certas indústrias. Ou seja, vai precisar de uma imensa capacidade de liderança e, mais, precisará de enorme sabedoria para distinguir o rumo certo. Já Lula diz que fará do Brasil uma imensa mesa de negociações, a câmara de todas as câmaras setoriais. Em sua campanha tem acolhido as demandas dos diversos setores privados e públicos, sendo aqui o mais recente o dos militares. Trata-se de uma enorme e variada demanda por gasto público, quer na forma direta (mais dinheiro para as universidades federais e para as Forças Armadas, assim como mais salário para todo o funcionalismo) quer nas formas indiretas (subsídios, créditos favorecidos dos bancos públicos, incentivos fiscais e redução de impostos para setores privados). Nesse esquema, o Estado recebe e compõe todas as demandas e ainda faz um monte de coisas, pois estão previstos novos investimentos e mais gastos públicos em diversos setores. O risco aí é surgir não uma política nacional mas um amontoado de interesses e demandas, seguindo-se uma imensa frustração dos não atendidos. O certo é que não há dinheiro público nem capacidade gerencial para tanbta intervenção do governo. Nesse quadro, o que sempre acontece é que levam vantagem os grupos mais organizados e com capacidade especial de influência no Congresso. O governo torna-se, então, corporativo e minoritário. Claro que muita coisa muda quando um governo começa de fato a funcionar. Mas o que temos pela frente é mais Estado, mais governo – um retorno e antes que se tenham completado as reformas. O risco é ficarmos com muitos híbridos, que não funcionam. Como, por exemplo, não funcionou o sistema elétrico meio estatal, meio privado, meio livre, meio regulamentado. Veremos. Publicado em O Estado de S.Paulo, 09 de setembro 2002

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