DIPLOMACIA SUL-SUL

. As más alianças de Lula       
A política externa do governo Lula, na sua parte mais visível e que mais agrada às esquerdas, baseia-se em um equívoco ideológico e em um enorme erro de conta, este no que se refere à diplomacia econômica e comercial. O equívoco está na frase do presidente Luis Inácio Lula da Silva, incluída no discurso de encerramento da cúpula América do Sul-países árabes: "Eu acredito que muito mais que as perspectivas comerciais imediatas …, o mais importante foi que nós nos conhecemos, que nós pudemos perceber o quanto somos parecidos, o quanto temos interesses comuns e o quanto poderemos construir juntos, num mundo onde o rico cada vez fica mais rico e o pobre cada vez fica mais pobre". Não é verdade que os países pobres estejam condenados a um eterno empobrecimento. Muitos deles, ao contrário, estão enriquecendo rapidamente, como é o caso de nações asiáticas, em especial a Coréia do Sul, já industrializada, e a China, aceleradamente nesse caminho. Aliás, esses países desenvolveram uma estratégia idêntica: crescer via comércio externo e, sobretudo, exportar pesadamente para os Estados Unidos, o maior e mais rico mercado. Jamais passou pela cabeça dos dirigentes desses dois países que poderiam mudar a geografia comercial do mundo por meio de uma diplomacia política que buscasse unir os pobres do mundo, o pessoal do Sul, contra os ricos do Norte. É que eles sabem fazer conta e não cometem o erro enunciado pelo próprio Lula em diversos de seus discursos. Diz o presidente: ?Nós respeitamos profundamente a nossa relação com os Estados Unidos, respeitamos profundamente a nossa relação com a União Européia, respeitamos de forma extraordinária a nossa relação com o Japão, a nossa relação com a França, mas o dado concreto e objetivo é que o mundo é muito maior que esses mercados?. Não é maior. É muito menor. Dados do Banco Mundial mostram que as nações já desenvolvidas respondem por 75% da economia global. É isso que explica as limitações comerciais da diplomacia Sul-Sul. Lula tem dito, em resposta às críticas, que, graças à política externa e suas viagens, o comércio brasileiro com África, América Latina e mundo árabe aumentou em torno de 50%. Mas é 50% em cima de valores muito baixos. A África, por exemplo, não recebe nem 5% das exportações brasileiras que, além disso, estão concentrados em poucos países, os mais desenvolvidos. Além disso, grande parte da expansão do comércio externo brasileiro decorre do fortíssimo crescimento da economia global. O ano passado, por exemplo, foi o melhor em 30 anos para todo o mundo. Neste momento, há uma desaceleração, mas o ritmo é ainda bom em boa parte dos países. Os Estados Unidos, por sinal, estão crescendo 3%, o que é forte para um país com Produto Interno Bruto de US$ 11,7 trilhões. Nesse ritmo, eles crescem mais que meio Brasil por ano. E os EUA ficam com 22% das exportações brasileiras. Em outras palavras, um bom contrato com a rede de supermercados Wall-Mart pode render mais negócios do que, por exemplo, o complicado e confuso acordo do Mercosul com a Comunidade Andina de Nações, firmado no ano passado. Pode-se argumentar, por outro lado, que esses números confirmam a injusta concentração de renda mundial, o que justificaria, politicamente, a diplomacia Sul-Sul.  É verdade que há concentração de renda e que riqueza atrai riqueza. Mas não é verdade que o capitalismo e a globalização recente tenham criado a pobreza. O mundo hoje é muito mais rico e mesmo os pobres, em geral, são menos pobres, à exceção de algumas nações africanas, totalmente à margem da economia global. O que ocorre é um crescimento global, com alguns países se adiantando, outros se atrasando. E há ricos que ficam estagnados, como o Japão. Quando se observa a trajetória dos que se adiantam, a conclusão é inequívoca: andam mais depressa aqueles que mais se integram ao capitalismo global. A proposta Sul-Sul não funciona ? nem nunca funcionou ? porque é falso que todos os países em desenvolvimento e pobres tenham interesses essenciais comuns. Ao contrário, freqüentemente há competição pelos mesmos mercados. E todos, em geral, têm tendência a proteger seus mercados. Tome-se o caso da China. O presidente Lula gosta de citar as relações econômicas e políticas com o gigante da Ásia como um bom exemplo de sucesso de sua diplomacia. Haveria convergências comerciais e diplomáticas, entendimento que fez com o que presidente rejeitasse queixas de empresários brasileiros contra a forte importação de produtos industriais chineses. Ao mesmo tempo, Lula tirou da pauta a Área de Livre Comércio das Américas, por entender que a economia brasileira não resistiria à competição com a americana. Na verdade, os manufaturados chineses, feitos com mão de obra barata e exportados com câmbio desvalorizado, podem causar muito mais estrago à indústria brasileira do que a competição dos países desenvolvidos, cujos produtos, aliás, com mais tecnologia, como máquinas, são mais úteis ao crescimento local. A China, claramente, quer comprar comodities do Brasil e  vender manufaturados. Faz o papel de rico do Norte, não companheiro do Sul. Ou seja, se o objetivo da diplomacia brasileira é melhorar a posição do país na geografia mundial, então deveria concentrar-se na Alca e no acordo com a União Européia, pois estaria aí envolvendo quase 70% das exportações brasileiras. Isso significa concentrar-se também no Mercosul e muito especialmente na Argentina, compradora de manufaturados brasileiros com valor agregado. Aliás, que os argentinos que não nos ouçam, mas o Brasil tem com eles a relação Norte-Sul: exporta manufaturas e compra comodities. No fundo, é disso que o presidente Nestor Kirchner está se queixando. E também, no importante campo psicológico, das seguidas declarações de Lula de que considera ?natural? a liderança do Brasil. O risco aí está numa eventual decisão da Argentina de buscar parceiros e alianças em outra parte, assim como os países da América Central estão preparando seu acordo de livre comércio com os EUA. Em resumo, vários pontos da diplomacia econômica de Lula estão corretos, como a busca de integração regional, a ampliação dos mercados, o fortalecimento do Mercosul, as boas relações com a Argentina ? aliás pontos tradicionais da política externa brasileira há décadas. Os métodos e a propaganda é que não correspondem. Mesmo porque liderança depende de dinheiro para investir nos países mais pobres. Daí a dificuldade, por exemplo, da integração sul-americana: faltam-nos capitais para fazer isso, daí a necessidade, para todos, de investimentos externos dos países desenvolvidos. Mas, certamente, o Brasil tem mais recursos que os demais sul-americanos e daí a presença de companhias brasileiras liderando setores em diversos países. Curiosamente, entretanto, quando exerce esse papel, o Brasil parece, aos olhos locais, como o grande explorador. Eis aí, política externa não é para amadores nem para ideólogos do Sul. Estes partem de um equívoco central: acham que reunindo um pobre, dois pobres, três pobres, isso forma um rico. Revista Exame, edição 843, data de capa 25/maio/2005

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