DILEMAS DA NOVA ESQUERDA

. Lula e Schroeder, a vida dura da nova esquerda O chanceler alemão Gerhard Schroeder tem um problema semelhante ao do presidente Luís Inácio Lula da Silva. Como o brasileiro, o chanceler, cargo equivalente ao de primeiro-ministro, apresentou projetos de reformas que reduzem os benefícios da Previdência pública, com o objetivo de equilibrar contas públicas e remover obstáculos à atividade econômica. Igualmente como Lula, schroeder enfrenta forte oposição dos sindicatos e da ala esquerda de seu partido, o Social Democrata. A proposta do chanceler ganhou a marca de fantasia Agenda 2010, talvez inventada por um Duda Mendonça alemão, menos criativo, por certo. É mais ampla que uma reforma previdenciária. Inclui medidas microeconômicas para destravar a atividade das empresas e assim recuperar a capacidade de crescimento, hoje muito baixa. No ano passado, a economia alemã cresceu a mixaria de 0,28%, o menor nível na Europa. Uma das causas dessa marcha lenta, segundo os economistas neoclássicos, é a excessiva regulação que domina toda a economia alemã. Só recentemente, por exemplo, aprovou-se lei nacional para permitir que o comércio funcione aos sábados até 8 da noite. Reparem: precisou de uma lei nacional para isso. Assim, a Agenda 2010 inclui propostas de reforma da legislação trabalhista, assunto aliás que está na agenda de Lula, embora de forma ainda indefinida. Na Alemanha, a oposição interna a schroeder tem outra proposta para a crise de baixo crescimento: pesados investimentos públicos para animar a economia. Problema: o setor público alemão já está estourando os limites de déficit fixados pela União Européia. Além disso, há a crítica dos economistas neoclássicos (ou simplesmente clássicos ou mais ortodoxos), para os quais o setor público já tem peso excessivo na economia, sendo necessário reduzi-lo. Se fosse um quadro da social democracia alemã, o ministro Antonio Palocci estaria propondo a Agenda 2010. As 95 páginas do documento Política Econômica e Reformas Estruturais, divulgado há pouco pelo Ministério da Fazenda, caminham em linha parecida. Define-se o déficit previdenciário como o problema básico da economia brasileira. Decorre daí a prioridade absoluta ao “ajuste definitivo das contas públicas”, apresentado como condição primária para a retomada do crescimento com distribuição de renda. Em paralelo, seguem-se propostas de reformas microeconômicas (especialmente no que se refere à garantia de crédito para reduzir o custo dos financiamentos) e de autonomia do Banco Central, neste caso para preservar o rigor da política monetária de controle da inflação. O BC alemão já é mais do que autônomo. Sua independência, aliás, foi exemplo para o mundo todo. Também as reformas microeconômicas propostas aqui e lá apresentam ênfases diferentes, mas o jeitão da coisa é o mesmo. Um grande ajuste fiscal e medidas micro para baratear e destravar a atividade empresarial. Não é o cardápio clássico dos partidos de esquerda, baseado no aumento do gasto público, na maior intervenção do estado na economia, na concessão de vantagens aos trabalhadores e na aplicação de restrições variadas ao capital e às empresas. Era esse, sem tirar nem por, o conteúdo dos documentos oficiais do PT, anteriores à campanha, “Um outro Brasil é possível” e “Ruptura Necessária”. Eis aí a razão da revolta dos sindicatos e das respectivas alas esquerdas com as agendas de schroeder e Lula. Como se resolve a contradição? Na Alemanha, schroeder aceitou a convocação de um congresso extraordinário do partido para 1o. de junho próximo, para tomar uma posição a respeito da Agenda 2010 e redefinir programas. O PT tomou atitude parecida quando convocou uma reunião do Diretório Nacional, em março, no qual se aprovou o documento “O Brasil começa a mudar”. Mas a reunião do Diretório é menos que um congresso. E o texto aprovado é de curto prazo, apóia pontos básicos da política aplicada pelo ministro Palocci (como aumento do superávit primário, a necessidade de juros altos neste momento de surto inflacionário e a manutenção do acordo com o FMI). É verdade que o documento também sustenta que o PT se comprometeu com um conjunto de reformas, citadas as da Previdência, tributária, trabalhista, agrária e política, e com reformas micro, como a de lei de falências. Mas não há detalhamento das reformas. E nos detalhes está o inferno. A CUT, por exemplo, declarou-se “surpreendida” com o texto da reforma da Previdência anunciada na semana passada. Surpreendida negativamente, é claro. Quando se fala em reforma trabalhista, os líderes sindicais do PT estão pensando em mais vantagens, como a redução da jornada de trabalho, enquanto os outros estão pensando, por exemplo, em reduzir os direitos trabalhistas para as micro e pequenas empresas. No geral, o governo Lula vai assim, pendendo entre dois tipos de divisão, a velha e nova agenda, de um lado, o que funciona e o que não funciona de outro. Não raro, as duas circunstâncias se misturam. A política econômica é, de longe, a agenda mais nova e a que mais funciona. Lula, com o braço competente de Palocci, entrega rigorosamente tudo o que promete nessa área, em tempo recorde. Vejam os indicadores. No resto, vai uma no cravo outra na ferradura. O ministro Furlan tem uma agenda moderna, o presidente do BNDES, Carlos Lessa, em tese seu subordinado, é talvez o único dos economistas da esquerda antiga em posto de importância. O ministro Roberto Rodrigues, da Agricultura, representa no governo o que tem de mais moderno no Brasil, o agronegócio. Mas tromba com os ambientalistas ideológicos e com a ameaça de destruição de bases importantes do agronegócio, como a Embrapa e suas pesquisas genéticas. A bronca do próprio Lula com as agências reguladoras, verbalizada ao extremo pelo ministro das Comunicações, Miro Teixeira, é coisa da velha esquerda, aquela que deseja ter o controle total do Estado. As agências são instrumentos modernos, que reduzem o poder dos governos, e é assim mesmo que tem de ser para garantir estabilidade e segurança quanto ao cumprimento dos contratos no longo prazo. É contraditório o governo encaminhar a proposta de autonomia do Banco Central e ao mesmo tempo decretar guerra contra as agências das áreas de energia, telecomunicações e petróleo. Claro que há mudanças a fazer em cada um desses setores mas por causa da contradição nas idéias e práticas, segue tudo devagar e confuso. Nas áreas estratégicas de telecomunicações e energia, os ministros e seus principais assessores gostariam de ampliar a poder do Estado, mas não têm dinheiro suficiente nem sabem como encaminhar isso setores com ampla dose de privatização. Na dúvida sobre qual lado tomar, a mudança não sai. E a única coisa de certo que se tem é que os investidores não estão seguros quanto às regras – e não investem. A crucial área de ciência e tecnologia, entregue ao PSB de Garotinho, está sendo dizimada em uma mistura de ineficiência e atraso de concepções. Na reforma agrária, o ministro Rosseto garantiu aos produtores rurais que não mudará a lei que penaliza as invasões; o MST garante que a lei não será cumprida e parece ter razão. Finalmente, a reforma da Previdência, com a contribuição dos inativos, deixou muitos petistas nem tão radicais em estado de choque. Ou seja, talvez Lula, como schroeder, precise de um congresso extraordinário, solene, para consagrar o novo PT. O alemão já está desgastado por anos de governo com baixo crescimento econômico e pode até perder o congresso. Lula não. Está na crista da onda, com popularidade e capital político de sobra para pilotar uma mudança no seu partido. De qualquer forma, é certo que em menos de um ano o governo Lula será diferente do que é hoje. E, se mantida a atual linha de política econômica, muitos petistas históricos vão desembarcar do governo e do partido. Publicado em O Estado de S.Paulo, 21/04/2003

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