. Democracia não dá dinheiro Faz tempo que é politicamente correto incluir os valores da democracia e da boa governança na análise econômica de um país.Um regime democrático e transparente seria um fator favorável à atração de investimentos nacionais e internacionais. Esqueça. É apenas politicamente correto. Na vida real, democracia não atrai um centavo de dólar. Quando se trata de dinheiro, a única coisa que vale é saber se o país tem condições de pagar suas contas. Se tem essas condições e ainda por cima é um regime democrático, melhor. Mas se é uma ditadura ou uma democracia de araque, também serve. Sobram exemplos. A China, claro, está no topo da lista. É o país que mais recebe investimentos estrangeiros no mundo. Ou seja, uma ditadura comunista corrupta é a queridinha do mundo capitalista. Há semanas pegou muito mal aqui no Brasil o índice da corrupção editado anualmente pela Transparência Internacional, uma espécie de ONG com sede em Berlim. O índice mede a corrupção percebida pelas pessoas que fazem negócios no país e examina especialmente o uso do poder público para ganhos pessoais. Vai de zero (máxima corrupção) até 10 (máxima honestidade) e o Brasil teve nota 4, ocupando a 54a. posição, praticamente o mesmo desempenho do ano anterior. Disseram que isso atrapalhava o risco Brasil. Já a China, com nota pouco acima de 3, pegou o 66o. lugar – e é possível que seu desempenho seja ainda pior. Não há imprensa livre por lá e uma maneira de se “perceber” a corrupção está nas denúncias dos jornais. O Partido Comunista e o governo mandam em tudo – e é com seus funcionários que precisa se acertar qualquer empresa interessada em fazer negócio por lá. E parece que os acertos funcionam, dada a quantidade de novos negócios que se abrem e prosperam.
Outro exemplo: a Rússia, queridinha recente do mercado internacional. No ranking da Transparência aparece ainda pior que a China. A nota da Rússia é 2,5 e sua posição, 86a., apenas três acima da Índia, outro país bem cotado quando se trata de economia. A Rússia não é uma ditadura escrachada. Há eleições, vários partidos, imprensa não estatal, poderes autônomos, mas é tudo de fachada. No início de outubro, houve eleições para governador da Chechênia. O candidato do presidente Vladimir Putin, Akhamad Kadyrov, ganhou com nada menos que 88% dos votos, tendo comparecido pouco menos de 90% dos eleitores. Detalhes: os jornalistas (estrangeiros, é claro) viram zonas eleitorais vazias, nenhum movimento de eleitores pelas ruas; os candidatos adversários foram forçados a desistir depois do assassinato de cabos eleitorais; um candidato que não desistiu teve seu nome impugnado na Justiça porque alguns eleitores que subscreveram sua inscrição se esqueceram de anotar “República da Chechênia” nos seus endereços. O presidente Putin também obteve vitória na eleição de Valentina Matvienko para governadora de São Petersburgo. Detalhes: apenas 30% dos eleitores compareceram e Valentina levou tendo menos de 20% dos votos dos inscritos. Ou seja, os potenciais adversários foram de algum modo afastados ou comprados com cargos federais. A televisão praticamente só noticiou a campanha da candidata oficial, embora a lei estipule espaços iguais para todos os concorrentes. Enquanto isso, no mundo econômico, a Rússia foi agraciada com o “grau de investimento” na classificação da agência Moody’s, uma das três mais importantes no mundo. Trata-se de uma classificação de crédito. Com a nota, a agência está dizendo que a dívida russa é equilibrada, bem administrada, de modo que o país é solvente, podendo receber financiamentos a juros baixos. E isso há apenas cinco anos da moratória parcial da Rússia, que causou tanta confusão no cenário financeiro mundial, inclusive e especialmente no Brasil. Lembram-se daquela história de que país que decreta a moratória fica 100 anos no gelo? Esqueçam. É tão falso quanto dizer que a democracia e transparência importam para a performance econômica. O país pode ter dado calote, pode ser uma democracia de araque ou uma ditadura escachada, pode ter governantes corruptos – se tiver uma dívida interna pequena em relação ao tamanho de sua economia e uma dívida externa proporcionalmente equilibrada em relação ao comércio externo, tudo bem. Os credores e investidores ficam tranquilos com a garantia real de que terão seu dinheiro de volta. O México, por exemplo, também é mais corrupto que o Brasil (64a. posição no ranking da Transparência) e sua democracia é bem menos sólida que a nossa. Mas o México é “grau de investimento”, seu risco país está em torno dos 200 pontos (o da Rússia é ainda um pouco menor), enquanto o risco Brasil resiste a cair abaixo dos 600 pontos. Lembram-se também da história recente, muito badalada no Fórum de Davos, segundo a qual não basta mais um país crescer e ter bons indicadores econômicos, sendo necessário ter bons indicadores sociais? Esqueçam. O presidente Lula foi recebido como o líder emergente que poderia fazer essa junção da economia com o social. Mas o que todos olharam e aplaudiram, de verdade, foi a política econômica ortodoxa, não o Fome Zero. Lula pode fazer o que quiser: engrossar com os Estados Unidos, assinar o Consenso de Buenos Aires, declarar a política externa independente, dar um abraço em Fidel. Se a sua política econômica continuar fazendo o superávit primário enorme para pagar juros e reduzir o endividamento público; se o comércio externo continuar em expansão, de modo a reduzir o tamanho relativo da dívida externa, estará tudo bem com os investidores e financiadores. De onde se conclui, diria um apressadinho, que democracia não serve para nada. Errado. A democracia brasileira serve para os brasileiros. É questão interna. É melhor viver em um país livre e limpo. E é também verdade que é mais fácil fazer negócios em um país assim. Mas se o mercado tiver que escolher entre uma dívida bem estruturada e uma boa democracia, não haverá dúvida. Outra conclusão errada que se pode chegar é que uma boa moratória, à russa, ajuda a sair do buraco. Errado. A Rússia ganhou suas notas atuais nãopor causa da moratória, mas por causa do petróleo, que jorrou em abundância em seu território, num momento em que os preços internacionais disparavam. A Rússia hoje é provavelmente o maior exportador de petróleo, cuja renda arrumou as contas externas e internas, facilitou a obtenção de superávits nos dois quesitos. O governo argentino de Kirchner pode estar pensando que sai do buraco com democracia social, novo consenso e um belo calote. Mas não vai a lugar nenhum se não fizer o tal vigoroso ajuste fiscal, à Lula. Publicado em O Estado de S.Paulo, 20/10/2003