DE QUEM É A IGNORÂNCIA?

. – O presidente Lula não sabe mesmo, ou aproveita a ignorância? —

Como muita gente no mercado, o presidente Lula também se queixou das agências de classificação de risco. No mercado, o pessoal diz que as agências não anteciparam a crise do crédito nos EUA e deram boas notas para investimentos que apodreceram rapidamente. Já Lula, em discurso na Bahia, reclamou da nota que as agências dão aos Estados Unidos. Sustentou que o risco dos EUA não poderia ser zero, como é, uma vez que o país está numa ?crise desgraçada? e ?entupido de dívida?.
É verdade que os EUA têm os déficits gêmeos, nas contas públicas – o governo gasta mais que arrecada – e nas contas externas, sobretudo por causa de um enorme déficit comercial.
Mas por que investidores, governos e bancos centrais do mundo todo (inclusive o brasileiro) continuam comprando títulos emitidos pelo governo norte-americano? Por que mantêm a confiança nesses papéis? Será que ninguém terá percebido o ?grande erro? cometido pelas agências, como percebeu nosso presidente?
Ocorre que a dívida dos EUA está na moeda local, na moeda deles. Isso faz uma brutal diferença.
Tomem por exemplo a dívida externa brasileira total, pública e privada, em torno de US$ 200 bilhões. Com o dólar a R$ 1,67, essa dívida equivale a R$ 334 bilhões. Ou seja, os devedores brasileiros precisam arrumar apenas R$ 334 bilhões para matar a dívida.
Imaginemos agora que o governo brasileiro perca o controle da situação econômica, que a inflação dispare, que o déficit das contas públicas aumente, que a crise internacional reduza as exportações brasileiras. Nossa moeda, o real, vai se desvalorizar. Imaginemos que chegue a R$ 2,50. Com isso, a mesma dívida externa de US$ 200 bilhões passaria de R$ 334 bilhões para R$ 500 bilhões (um salto de R$ 166 bilhões, um dinheirão, equivalente a 6,5% do PIB do ano passado).
Considerando que a dívida pública é um pouco menos da metade da dívida externa total, o aumento no endividamento do governo seria de 3% do PIB. Para se verificar o tamanho disso, basta notar que no ano passado a dívida líquida do setor público caiu de 43% do PIB para 41,6%, uma redução de 1,4 ponto percentual, que foi considerado como um bom resultado.
Já a dívida americana está em dólar, moeda deles. Se o dólar se desvaloriza, como está ocorrendo, a dívida se desvaloriza, fica menor, que é o que está ocorrendo.
Mas o outro fator pelo qual o risco dos EUA é zero está no passado de bom pagador – ao contrário da reputação do Brasil, cujos governos de tempos em tempos se orgulharam de dar calotes na dívida externa e cujas lideranças políticas, como as do PT, pregaram e algumas ainda pregam o calote das dívidas interna e externa.
Aliás, em 2002, quando ficou claro que Lula seria eleito presidente, o mercado olhou para o passado e para os documentos do PT e o que aconteceu? O dólar foi a R$ 4,00, dobrando a dívida externa medida em reais, e o risco Brasil foi a 2.400 pontos.
Depois, o mercado leu a ?Carta ao Povo Brasileiro?, na qual Lula prometia manter as bases da política econômica de FHC e, sobretudo, prometia continuar pagando a dívida em dia. Com isso e as ações concretas da equipe econômica comandada por Palocci e Henrique Meirelles, o mercado se convenceu de que não haveria calote e as cotações foram voltando.
Ou seja, Lula pediu, sim, o voto do mercado, ao contrário do que disse no mesmo discurso em que criticou as agências. Pediu o voto do mercado quando escolheu Meirelles para o BC. Pediu de novo quando pagou direitinho as prestações para o FMI. E de novo quando ampliou o superávit primário para reduzir a dívida interna. Na verdade, Lula pediu o voto do povo duas vezes. Do mercado, pede todo dia útil.
Já nos Estado Unidos, essas questões nem aparecem. Tudo isso é fácil de saber, especialmente para um presidente da República.
De maneira que há duas hipóteses para as bobagens ditas pelo presidente Lula. Ou ele sabe disso e fez um discurso populista, jogando, pois, com a ignorância do público. Ou a ignorância é dele. Escolham a sua hipótese.
O fato é que, do alto de sua popularidade, o presidente, que já se achava, agora parece ter perdido qualquer limite. Ele fala o que lhe dá na telha – e dá cada coisa.

Publicado em O Globo, 15 de maio de 2008

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