DE COMO A CHINA SE TORNOU CAPITALISTA

. O segredo da China

Entre os tantos paradoxos que cercam o fantástico crescimento chinês, o mais intrigante coloca também a questão chave para se entender (ou não) o milagre. O capitalismo é o regime do livre mercado, o que supõe a liberdade individual de empreender, de tocar seu negócio e enriquecer. Ora, como é possível que esse regime seja introduzido com base num planejamento central comandado por um partido comunista?
Durante muito tempo se pensou que foi assim mesmo. A partir de 1978, tal a história mais ou menos oficial, Deng Xiaoping, tendo vencido a disputa política com os herdeiros de Mao, decretou o fim da Revolução Cultural e lançou a grande reforma econômica em direção ao livre mercado, com capitais estrangeiros, que foi introduzida passo a passo, dirigida pelo Comitê Central.
Não foi bem assim, relata o jornalista James Kynge, autor do excelente livro ?A China Sacode o Mundo?, lançado aqui pela Editora Globo. Correspondente do jornal Financial Times na China, ele desvenda o mistério.
Resumindo, passou-se mais ou menos seguinte: a situação do país era desesperadora a Revolução Cultural havia paralisado a produção de largas áreas da economia nacional, nas cidades e no campo havia fome e desemprego em massa, inclusive dos milhões de profissionais que haviam sido enviados para ?reeducação? na zona rural e estavam de volta às cidades.
Nesse ambiente, as autoridades chinesas toleraram um ?liberou geral?. Qualquer pessoa que descobrisse um meio de tocar um negócio, ganhar a vida, gerar produção e, ainda mais, criar emprego, podia seguir em frente, mesmo que sua atividade fosse formalmente ilegal.
Houve uma explosão de empreendimentos privados, forçados pela falta de emprego. Nascia assim o espírito capitalista. Quanto ao planejamento central, parece ter sido muito irregular. Alguns projetos andaram, outros ficaram pelo caminho. Assim, o êxito das reformas foi consequência de desobediências e do bom senso de autoridades locais de ignorar regras vindas da capital.
Acrescente-se a isso o jeitinho chinês. Kynge conta, por exemplo, que uma das primeiras decisões da era Deng foi permitir que camponeses formassem cooperativas para cultivar terras ?emprestadas?, fora das fazendas estatais, podendo comercializar a produção no mercado livre. Os camponeses entenderam isso como autorização para começar a produzir nas terras da família, o que, entretanto, continuava proibido. Funcionários fizeram vistas grossas e a produção agrícola deu um salto.
Outro exemplo interessante resultou de uma ?acrobacia semântica?, observa Kynge, com a palavra ?coletivo?. No sentido estrito do regime comunista, a propriedade era coletiva, o que significava que tudo pertencia ao Estado. No novo sentido, coletivo passou a representar um grupo de proprietários privados. Surgiram assim milhares de empresas coletivas pelo país, não raro tendo prefeituras como sócias.
Conclui Kynge que a explosão chinesa foi uma mistura das estratégias nacionais de Deng com a disposição de se aceitar qualquer fórmula que resultasse em crescimento. Neste segundo lado da equação, nasceram os grandes empresários chineses, sob o lema de Deng de que se devia deixar que as pessoas ficassem ricas.
O outro fator a explicar o rapidíssimo crescimento chinês está na combinação de mão de obra muito barata com tecnologias modernas. Fazendo todos os ajustes contábeis, Kynge mostra que em 2006 um operário chinês razoavelmente pago ganhava 1.300 renminbi por mês, mais do que a remuneração de um trabalhador inglês no início da Revolução Industrial.
Um trabalhador numa madeireira de Chicago, em 1850, ganhava entre uma vez e meia e três vezes o salário atual de um operário chinês na mesma função, hoje. Só que o chinês, mais educado, trabalha em fábricas modernas, de alta capacidade. Ou seja, a produtividade é imbatível.
Claro que a situação não será sempre assim. O próprio enriquecimento do país vai elevar os salários, como ocorreu no Japão e na Coréia do Sul. Mas até lá, não há como competir com os preços chineses.
Tudo considerado, as autoridades chinesas deixaram o barco correr e agora tratam de organizar o rumo. Por exemplo, só recentemente introduziram na constituição o direito de propriedade.
Outro detalhe importante citado por Kynge: a obstinação dos chineses em copiar o que deu certo nos EUA, de métodos de produção ao sistema nacional de rodovias e ferrovias.
Vender para os norte-americanos e tentar repetir o que os levou à riqueza, eis uma regra chinesa. Bem diferente do que pensam e fazem certas lideranças atuais, ditas de esquerda.

Publicado em O Globo, 13 de setembro de 2007

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