CANADÁ COMPROMETE COMÉRCIO MUNDIAL

. BRASIL X CANADÁ O destempero canadense dá munição aos adversários do comércio livre no mundo Não contem as canadenses, mas conhecendo a burocracia do governo federal, é bem provável que o Ministério da Agricultura não tenha prestado a tempo todas as informações sobre a saúde da vaca brasileira, solicitadas pelo Canadá. É claro que o pessoal do Ministério vai negar até a morte, mas nem o presidente Fernando Henrique comprometeu-se com a tese de que seu governo cumpriu os prazos. Em entrevista ao Jornal Nacional, na quinta-feira, perguntado se não teria havido atraso, FHC saiu para a tangente: “Suponha que tenha havido esse problema . . .” E passou para o argumento relevante. A eventual falta de algumas informações não justifica a pesada resposta canadense, de proibir as importações da carne brasileira. Foi como responder com bomba atômica a uma escaramuça de fronteira. Portanto, não pode ter sido um problema de vaca. Como existe um outro e enorme contencioso, a disputa comercial Embraer/Bombardier pelo lucrativo mercado dos jatos regionais, parece claro que essa é a verdadeira razão da história. Deve-se acrescentar que a defesa da Bombardier pelo governo canadense não é apenas profissional. Há relações mais do que próximas entre a empresa e o grupo político do primeiro-ministro Jean Chrétien. Além de a Bombardier ser financiadora de campanhas eleitorais, há intenso trânsito de executivos entre cargos no governo e postos na direção da empresa. Em resumo, tudo indica que alguém no governo canadense resolveu mostrar serviço aos amigos e dar uma ferrada nesses brasileiros. Por isso mesmo, por ter sido um gesto tão sem sentido, provocou tanta reação no Brasil e, depois, no Canadá. Muita gente lá mesmo, dentro e fora do governo, percebeu a mancada. Na sexta à tarde, já se preparava o recuo do Canadá. O esquema traçado: a missão veterinária canadense vem ao Brasil nesta semana, constata que vai tudo bem e pronto. Quer dizer, pronto esse assunto. Continua o caso dos jatos e, além disso, o destempero canadense forneceu pesada munição aos adversários da constituição da Associação de Livre Comércio das Américas, Alca. A Alca já está em andamento. A idéia foi aprovada pelos chefes de Estado das Américas, fixando-se um cronograma que prevê negociações até 2005, iniciando-se nesse ano os primeiros passos para a eliminação das barreiras comerciais no continente. Assim, a zona de livre comércio somente estaria efetivamente implantada alguns anos depois de 2005. A novidade é que os Estados Unidos estão querendo antecipar esses prazos. Têm a concordância explícita de alguns países latino-americanos, como o Chile, e o apoio tácito de outros, como a Argentina. O governo brasileiro é oficialmente contra a antecipação, sob o argumento de que é preciso dar tempo para que as empresas locais se preparem para a competição livre. Independente da justificativa, essa posição é tipo tucana – um modo de conciliar linhas totalmente contrárias que convivem dentro do governo. A área econômica – cujo núcleo está na Fazenda e Banco Central – é claramente favorável ao livre comércio, à abertura. No lado oposto, há uma ala protecionista, que não apenas não quer a Alca, como gostaria de reverter a abertura já feita até aqui. O representante mais ativo é o ministro da Agricultura, Pratini de Moraes, para quem o destempero canadense sepultou a Alca. Mais tucano, o presidente FHC notou que o episódio lança sombras sobre a Alca pois, notou, o que o Canadá fez é exatamente o oposto do que se pretende com a Alca. É um ponto essencial. Depois de sucessivas rodadas no âmbito da Organização Mundial de Comércio, tarifas de importação e barreiras alfandegárias foram derrubadas e/ou reduzidas pelo mundo afora. Mas está faltando abrir e regulamentar muitas áreas, algumas delas de interesse direto do Brasil, como a agropecuária. O Brasil é um grande exportador de produtos agrícolas e pode ser uma dos maiores exportadores mundiais de carne bovina. Especialmente agora que os rebanhos europeus estão fora da competição. Explica-se. A doença da vaca louca – uma rara doença dos nervos, que leva à degeneração e morte, do bicho e dos seres humanos que o comeram – só apareceu em bovinos alimentados com farinha feita de restos de ovelhas, estas as hospedeiras originais da estranha moléstia. Só as vacas européias foram alimentadas com essa farinha, pois são criadas confinadas, por falta de espaço, e precisam de reforço alimentar para engordar rapidamente. No Brasil, assim como na Argentina, bois e vacas são criados soltos, nos pastos, nos pampas, alimentando-se de capim – que é o natural. Os bovinos, como sabemos, são herbívoros. Transformados em carnívoros, deu no que deu. Agora, os europeus estão matando o rebanho carnívoro e está proibido em todo o mundo o uso da farinha de ovelhas. Portanto, num momento em que há suspeita mundial em relação à carne européia, abre-se um imenso mercado para o gado naturalmente herbívoro do Brasil. Nesse momento, vem o Canadá e faz essa presepada. Daí a justificada raiva dos pecuaristas brasileiros. Mais do que isso, o Canadá abusou de um instrumento que está no centro da discussão na OMC: o uso de barreiras sanitárias para impedir o livre comércio. Para resumir: se um país pode, unilateralmente, sem mais nem menos, dizer que está suspeitando da vaca do outro e suspender a importação, prejudicando negócios pelo mundo afora, então não se trata de comércio livre, muito menos organizado. Não é simples resolver esse assunto. Todo governo deve cuidar da segurança alimentar de seus cidadãos, de modo que barreiras sanitárias fazem sentido em muitos casos. Por exemplo: é razoável barrar importação de carne da Europa, porque lá houve casos de vaca louca. Ocorre que muitos países, as potências, abusam do artifício para guerras comerciais – caso do Canadá – ou para proteger produtores locais ineficientes. Qual o interesse do Brasil, um país que quer exportar carne e produtos agrícolas e é muito competitivo no setor? É derrubar essas barreiras impostas unilateralmente. Como isso pode ser feito? Com o estabelecimento de regras internacionais de livre comércio, que disciplinem inclusive os aspectos sanitários. Dito de outro modo: se já existisse a Alca, com uma abertura ampla, incluindo os produtos agropecuários, com regras claras, o governo do Canadá não poderia unilateralmente barrar a carne brasileira. Assim como os EUA não poderiam impor cotas para o açúcar brasileiro ou impostos extras sobre o suco de laranja e o aço. Dizer que o episódio vaca louca-Canadá sepulta a Alca é tentar virar a coisa pelo avesso e defender a empresa local ineficiente que teme a concorrência externa. Os setores competitivos da economia brasileira, que são os mais dinâmicos, incluindo a pecuária, precisam é do contrário, de comércio tanto mais livre quanto regulado por normas internacionais.

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