BRASIL DIVIDIDO

. O Brasil moderno quer mudar     
Futurecom é, há alguns anos, o super-evento das telecomunicações no Brasil. De classe internacional, realiza-se anualmente e reúne todo o setor, de operadores a fabricantes e usuários. O setor é privado, nacional e estrangeiro, e ali se encontram os homens e as mulheres que movimentam talvez a área mais dinâmica da economia brasileira.     
Quatro anos atrás, em Florianópolis, o evento começou no dia seguinte à vitória de Lula no segundo turno. O mercado financeiro ainda estava em polvorosa, mas ali, setor real, não havia pânico. O pessoal tinha até candidato a ministro das Comunicações, o deputado petista Jorge Bittar, do Rio, considerado um homem  do setor.     
Além do mais, tal era o raciocínio, telecomunicações no Brasil funcionam conforme um bom e moderno arranjo institucional: empresas privadas e sob regras e contratos de longo prazo, com a gestão da Agência Nacional de Telecomunicações, Anatel, órgão com autonomia operacional, diretores com mandato e, pois, autonomia em relação ao governo. E Lula havia dito na campanha que não romperia contratos, nem reveria as privatizações.     
O evento deste ano, também em Florianópolis, realizou-se na semana passada, no dia seguinte à votação do primeiro turno. O estado de espírito geral variava entre a decepção, a má vontade e a aberta oposição ao governo Lula, com a consequente torcida para Geraldo Alckmin.
    
Sentimento esse reforçado pelo discurso de inauguração do ministro das Comunicações, Hélio Costa. Bem resumido, o ministro disse o seguinte: que esse negócio de agência independente era conversa neoliberal e que quem mandava no setor eram ele e a ministra Dilma Roussef, da Casa Civil.     
Cru, mas sem novidade. Ao longo desses quatro anos, o governo Lula dedicou-se a sabotar não apenas a Anatel, mas as demais agências instituídas no governo anterior. Em vez de técnicos e especialistas, nomeou políticos e correligionários para os postos que ficaram vagos; deixou os postos vagos durante muito tempo, bloqueando o funcionamento dos órgãos; apertou os orçamentos e tratou o tempo todo de tirar poder das agências.     
Esse negócio de agências independentes não é, ao contrário do que se pensa no governo, uma invenção da era FHC. É sistema implantado no mundo todo, com o objetivo de garantir que setores estratégicos, como telecomunicações e energia, que exigem regras e contratos de longo prazo, não fiquem submetidos aos humores  e ideologias do governo de plantão.     
Resumindo, imagine a seguinte situação: a empresa ganha licitação e assina contrato para instalar uma rede telefônica nacional sob determinadas regras, valendo por dez anos. Aí ocorrem eleições, vence a oposição e o novo governo decreta: a rede agora não passa por aqui, mas por ali, a tarifa não é mais calculada daquele jeito e quem vai tocar o projeto é uma outra companhia.     
Está claro que, dado um ambiente assim, não há investimentos privados. Só há quando as regras são instituídas para  muitos anos, com contratos garantidos por lei.     
Mas então a gente ganha e não manda? ? repetiam Lula e seus assessores.     
Dirige de outro jeito. As regras de um setor não são imutáveis, mas só podem ser alteradas com projetos de lei apreciados no Congresso Nacional. Se um setor está privatizado, nada impede que um novo governo proponha a reestatização. Mas precisa mandar o projeto de lei para o Congresso.     
É mais complicado e aí não interessa para quem acha que o governo deve estar a serviço direto do partido que ganhou as eleições.     
A institucionalização funcionou mais ou menos. O governo Lula tentou, mas a existência de um arranjo institucional sólido impediu o completo aparelhamento do setor. Este continuou funcionando com base nos contratos de longo prazo ? e o governo daria um péssimo sinal ao mercado se tentasse cancelá-los. Mas pelo que ouvia de participantes do Futurecom, certamente teriam ocorrido mais investimentos se o governo Lula não tivesse passado o tempo procurando um meio de driblar as regras. Enfraquecida, a Anatel não pode administrar uma sólida expansão do setor.     
É esse tipo de situação que separa as duas candidaturas do segundo turno. E foi isso que, em 2006, tirou de Lula o Brasil moderno e competitivo, ali onde o setor privado é dominante e dinâmico. Em 2002, Lula venceu ali também ? em todo o Sul, Sudeste e Centro-Oeste (do agronegócio), perdendo apenas no Rio para um candidato da terra, Anthony Garotinho.     
Venceu porque as pessoas estavam cansadas dos oito anos de FHC, especialmente do final do período, quando já se haviam perdido o ânimo e a capacidade política para reformas. Quem sabe Lula tem como retomar o desenvolvimentismo? ? tal foi a esperança.     
Esperava-se ainda que, líder social e sindical, Lula fosse capaz de convencer suas bases a aceitar reformas, como a previdenciária e a trabalhista.A primeira saiu meia boca. A segunda parou justamente nos  líderes  sindicais amigos do presidente.     
Passados quatro anos, as classes médias que estão nesse setor dinâmico da economia, os trabalhadores e, por fim, as chamadas elites econômicas desse Brasil moderno perderam todo o encanto.     
Esse pessoal quer menos governo, menos impostos, mais ambiente para o empreendimento privado.     
Lula está tentando recuperar ao menos parte desses votos. Mas será difícil. Foram quatro anos de hostilidade ao ambiente privado, com diversos setores tratando o empresário como se fossem todos bandidos.     
Ainda agora, há um forte movimento de protesto contra ineficiências da Receita Federal, como a demora em resolver pendências acerca das famosas Certidões Negativas de Débito. Responde a Receita: isso é coisa de sonegador.     
Não é. Grandes empresas, grandes pagadoras, estão por aqui com a Receita.     
Na verdade, o único setor em que Lula respeitou a autonomia das agências foi na política monetária. Não mexeu com o Banco Central, com medo das reações imediatas, e destruidores, do mercado financeiro.     
E logo aí saíram dois resultados que o pessoal da economia real não gosta: os juros altos e o dólar muito baixo.  Publicado em O Estado de S.Paulo, 09 de outubro de 2006

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