GOVERNO LULA EM DISPUTA PERMANENTE

. Governo em disputa permanente Foi a semana em que a Bolsa de Valores de S.Paulo beliscou os 18 mil pontos (contra 8.600 de um ano atrás), o risco Brasil andou abaixo dos 600 pontos (mais de 2.400 em setembro de 2002) e o dólar oscilou entre R$ 2,80 e R$ 2,90 (já bem longe dos R$ 4,00, cotação verificada à véspera da eleição). Além disso, apareceram sinais fortes de recuperação da atividade econômica: aumento de produção e vendas na indústria; exportações robustas; crescimento do crédito pessoal (para compra de duráveis e automóveis); e o movimento mais intenso de caminhões pesados nos postos de pedágio, o que indica produção industrial em expansão, conforme um interessante estudo da consultoria Tendências sobre dados da Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias. Não há dúvida. Passou por completo a crise de confiança, há uma retomada e a discussão agora é sobre o tamanho e a duração do processo que já se iniciou. Um simples aquecimento ou crescimento sustentado? E para esta questão a semana passada não foi boa. Intensificaram-se ou afloraram divergências internas do governo Lula que podem comprometer sua capacidade de gestão, sobretudo em um quesito chave, a criação de um ambiente favorável a novos investimentos privados, condição essencial para o crescimento forte e duradouro. Os representantes da esquerda no PT e nos partidos aliados têm dito que o governo Lula está “em disputa”. É formado por diversas correntes políticas (da neoliberal à esquerda radical), que se digladiam por ocasião da tomada de decisões, cada lado tratando de arrastar a administração na direção que julga a correta. A esquerda tem sido derrotada na maioria dos pontos importantes menos na política externa, considerada pela liderança esquerdista quase como a única ação do governo Lula que exprime o pensamento clássico do PT e seus aliados. Mas eis um panorama das disputas: Política externa – o foco da divergência está no encaminhamento da Área de Livre Comércio das Américas. O Itamaraty, com o apoio do assessor especial do presidente para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia, não ficaria triste se as negociações fossem sepultadas. O chanceler Celso Amorim, o ministro José Dirceu e Garcia sustentam que se trata de uma questão comercial e não de posição ideológica, um tipo de antiamericanismo. Mas quando colocados diante da tese de que é preciso ser flexível nessas negociações, respondem: “não nos peçam para entregar o país” (Garcia, Estadão, 09/10). Isso joga os ministros Luis Fernando Furlan (Desenvolvimento) e Roberto Rodrigues (Agricultura), além de integrantes do primeiro escalão da Fazenda, no time dos traidores da pátria. Foram eles que criticaram a ação do Itamaraty, por enxergarem nela um claro viés de melar a negociação. Esse pessoal da área econômica, justamente a turma “acusada” de neoliberalismo, acredita defender os interesses do país quando propõe um caminho que leve à abertura ainda que parcial do mercado americano a produtos brasileiros, uma vez que aumentar as exportações é crucial para o crescimento duradouro. (Mas para não alongar demais este capítulo, recomendo a leitura do artigo de Rolf Kuntz, Estadão, 09/10, página B2, simplesmente perfeito no enquadramento desse assunto). Transgênicos e meio ambiente – A disputa ficou mais evidente com a decisão do deputado Fernando Gabeira de deixar o PT, desiludido com a política ambiental do governo, segundo ele totalmente contrária ao programa do partido e aos compromissos de campanha. Gabeira executou um movimento tranquilo, disse que saía porque não o chamavam para discutir os assuntos (“não faço falta”), mas o pessoal da política ambiental aproveitou o embalo para pedir a demissão do ministro Roberto Rodrigues, de novo ele. Essa disputa tem um capítulo parlamentar: a votação MP 113, que autoriza o plantio e a comercialização da soja transgênica, aliás contestada no Supremo Tribunal Federal pelo procurador geral, Cláudio Fontelles, nomeado por Lula. Receita Federal – A disputa veio a público na semana passada, mas já vinha quente nos bastidores. A origem é política. Setores ligados ao PT e aos partidos aliados esperavam assumir o comando da Receita Federal, para a qual desenvolveram propostas bem diferentes da linha praticada no governo FHC pelo secretário Everardo Maciel. Mas o ministro Antonio Palocci nomeou para secretário Jorge Rachid, que era o adjunto de Maciel, de modo que a equipe dirigente, com mudanças aqui e ali, permaneceu a mesma, sobretudo com a mesma orientação. Para Palocci, trata-se de orientação técnica. Não pertence a esse grupo o corregedor geral da Receita, Moacir Leão, que aparece na ponta de lança dessa disputa. Também ele sustenta que sua ação não tem nada de política, sendo apenas técnica e na “forma da lei”. Essas três divergências estiveram no centro do noticiário na semana passada. Mas seguem-se a outras que permanecem, em torno reforma da Previdência, em votação no Senado, e da política econômica em geral, vista pela esquerda como o exemplo acabado do neoliberalismo. Há uma outra disputa que ainda não veio a público, mas tem o mesmo teor. Trata-se da definição das regras para o setor de saneamento, que para alguns, à esquerda, deve ser essencialmente público, enquanto para outros deve assentar-se nas parcerias com o setor privado. E o acordo com o FMI, cuja renovação tem a simpatia da equipe econômica? O problema é que, passado o sufoco, numa política administrada pela Fazenda, o governo Lula enfrenta agora a necessidade de definir as bases de um crescimento duradouro. Sem segurança quanto a isso, o investimento privado não se atreve. Dizem os analistas que o PT sempre foi assim, cada decisão tomada depois de muita disputa interna. Mas é diferente quando o partido está no governo. O investimento não aparece enquanto não se souber qual lado vai levar e as disputas do governo Lula parecem não acabar nunca. Os perdedores de cada lance não se conformam. Por exemplo: o governo discute e decide pela MP dos transgênicos. Os contrários ameaçam derrubar a coisa no Congresso e contestam na justiça. E o plantador continua inseguro, o que limita seus negócios. Em todo governo há divergências. O problema é quando envolvem pontos essenciais e, sobretudo, quando são permanentes. A tarefa do presidente fica cada vez mais difícil. Lula tem de desempatar tudo, desde acordo com FMI até a viagem da ministra Benedita da Silva. Disputa permanente é desgaste permanente. Publicado em O Estado de S.Paulo, 13/10/2003

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