BRASIL, CENÁRIOS DE CRISE E DE NORMALIDADE

. O pior é hoje. O melhor, amanhã? Se você ainda tem curiosidade em saber como ficaria o país se fosse eleito um presidente vindo da oposição, e carregando um projeto de ruptura com o atual modelo econômico, basta olhar em torno. Dólar acima de R$ 3,00, bolsa e títulos da dívida externa despencando, juros na lua, investidores e credores em retirada. É simples assim: o cenário exibido hoje pelos indicadores financeiros antecipa o governo de um presidente ou incapaz de entender as bases do mercado ou, pior, achando que pode dobrá-lo facilmente na base do grito. Mas há também um cenário da moderação, formado a partir da expectativa de que o próximo governo, qualquer que seja o presidente eleito, se renderá ao bom senso, fará acordo com o Fundo Monetário Internacional e manterá alguns fundamentos, como o superávit primário das contas públicas. Este último cenário está expresso no Relatório de Mercado, divulgado semanalmente pelo Banco Central, por meio do boletim Focus, e que traz a visão de mais de cem instituições financeiras, consultorias econômicas e institutos de pesquisa. O Relatório da última segunda-feira de julho, 29, exibe um contraste chocante com o que ocorreu no mercado naquele mesmo dia. Enquanto o dólar escalava para R$ 3,20, as previsões do Relatório (encontrado no site do BC, www.bcb.gov.br) indicavam que a moeda americana chegaria ao final deste ano valendo R$ 2,60 e, no final de 2003, apenas R$ 2,70. Uma análise geral deste cenário mostra ainda que os meios econômicos esperam para este ano um ambiente mais do razoável. A inflação, mais uma vez, ficará acima do teto da meta (5,5%, pelo IPCA, índice do IBGE), mas deve se reequilibrar já em 2003, ficando perto do centro da meta (4%). No conjunto, para o ano que vem, espera-se movimento de evidente melhora na atividade econômica, inclusive com recuperação do crescimento. Ficção? Não, ou pelo menos não inteiramente. Esses cenários são construídos com base em reconhecida teoria econômica. Parte-se de dados atuais, consideram-se tendências históricas – até aqui tudo científico e baseado em fatos – e finalmente formulam-se hipóteses para o futuro – aqui a parte mais inventiva, digamos assim. No caso do Relatório do Mercado está expressa uma evidente hipótese política: que não haverá ruptura com as bases do atual modelo econômico (superávit primário, principalmente, mais metas de inflação, câmbio flutuante e pagamento da dívida rigorosamente conforme os contratos atuais). Isso significa que a expectativa dominante nos meios econômicos conta com a eleição de um presidente ou já convencido da necessidade de manter aqueles fundamentos (José Serra) ou que se converterá à tese (Luis Inácio Lula da Silva, em processo de moderação, ou Ciro Gomes, que, tendo chegado à liderança nas pesquisas de segundo turno, sofre agora a mesma pressão que se fez sobre o petista dois meses atrás). Eis aí, o mercado efetivo no final de julho exibiu o pior cenário possível, o de um governo de ruptura. O Relatório de Mercado exprime a expectativa (ou, se quiserem, a esperança) de que o pior não acontecerá. A realização desse cenário positivo depende, entretanto, de ações imediatas. Assim como o mercado antecipa para agora o pior possível, o governo e os atuais candidatos precisam antecipar as providências que debelam esse incêndio. Entre essas, a mais importante no momento é um novo acordo com o FMI, que coloque mais dólares à disposição do Banco Central e adie pagamentos a serem feitos aos organismos internacionais no começo do ano que vem. Como se relatou aqui na última edição de Exame, esse acordo só terá eficiência máxima se de algum modo for endossado pelos candidatos mais competitivos. Há três semanas, pelo menos, surgiram sinais de que o presidente do BC, Armínio Fraga, trabalha nessa direção: ou um acordo já, apoiado pelos candidatos, ou um entendimento feito agora pelo atual governo, que possa ser aprovado pelo novo presidente tão logo seja eleito. Serra já manifestou apoio ao acordo. Lula disse que espera não precisar recorrer ao remédio amargo, mas que, se for preciso, o fará se e depois de eleito. Não quer sentar na cadeira antes da hora. Quanto a Ciro, ainda se aguarda. A escalada do dólar no final de julho atropelou as negociações internas e obrigou o governo a despachar logo a missão para o FMI. Mas fica uma pergunta: quais as chances de êxito, comparando-se, por exemplo, com a situação da Argentina? Pergunta que foi recolocada por uma mais declaração desastrada do secretário do Tesouro dos EUA, Paul O’Neill, que enfiou Brasil, Argentina e Uruguai no mesmo saco. (A propósito, foi muito pertinente uma observação recente da revista Economist, segundo a qual uma das principais providências para administrar as dificuldades econômicas mundiais seria, antes de mais nada, calar o secretário). A verdade é que a situação brasileira é diferente, para melhor. Primeiro, porque o cenário de deterioração dos indicadores financeiros ocorreu antes da eleição e na vigência de um governo, o de FHC, que tem praticamente quatro anos de acordos com o FMI, cumpridos rigorosamente. Foram, portanto, quatro anos seguidos de superávit primário nas contas públicas, a mais importante medida de solvência do Estado. Significa que o governo, no seu funcionamento, está conseguindo economizar recursos para pagar parte dos juros e assim equilibrar a relação entre a dívida pública líquida e o Produto Interno Bruto. É verdade que essa relação piorou nos últimos dois meses – e vai piorar de novo em julho – mas por causa da desvalorização do dólar, que impacta a dívida externa (tomada na moeda americana) e a parte da dívida interna indexada ao dólar. Mas, primeiro, esse impacto só ocorre se o dólar permanecer nesses níveis até o vencimento dos papéis, digamos, dolarizados. E o prazo médio de vencimento médio dessa dívida é de 18 meses. Em segundo lugar, é preciso admitir que o dólar se desvalorizou por causa da expectativa de que o próximo governo pode virar o atual modelo de ponta cabeça, isto é, abandonar especialmente a prática do superávit primário. Claro que há um cenário externo também negativo que vem desde abril, com a crise de confiança nas bolsas americanas. Isso levou a uma retração geral dos investidores, redução do crédito, desvalorização de moedas e aumenta do risco país de todos os emergentes. Mas a situação brasileira piorou muito mais, porque ao cenário internacional negativo sobrepõe-se o fator eleições. É razoável supor, portanto, que uma vez ficando claro que o próximo governo manterá aqueles fundamentos, incluindo um acordo com o FMI, o pessimismo ceda à moderação e a cotação do dólar volte a patamar mais compatível com a situação real da economia. Não esquecer que também as contas externas vêm se ajustando há vários meses, em consequência mesmo do regime de câmbio flutuante. Em junho, o déficit em transações correntes dos doze meses anteriores chegou ao nível mais baixo desde 1996, sendo totalmente coberto com Investimento Direto Estrangeiro –IDE. Tudo considerado, ao contrário do que ocorre na Argentina, as contas internas e externas do país são perfeitamente administráveis, mantidos certos fundamentos. O cenário alternativo é o de ruptura, esse que está por aí. Publicado na revista Exame, edição 772, data de capa 07/08/2002

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