. Estamos só no começo A proposta da reforma da Previdência é um avanço. Mas será preciso mudar muito mais no setor público O governo Lula mantém o plano de votar a reforma da Previdência no plenário da Câmara dos Deputados, em primeiro turno, no próximo 5 de agosto. Embora ainda haja negociações e protestos em curso, o governo pretende aprovar o projeto tal como saiu da Comissão Especial, o que representaria, conforme os números oficiais, um corte de R$ 50 bilhões no déficit previdenciário dos servidores públicos previsto para os próximos 20 anos. Se realizar todo o plano – no prazo e no conteúdo – o governo Lula terá obtido um resultado simplesmente espetacular – e este é um ponto a ressaltar. Será um tempo recorde para a primeira votação de uma emenda constitucional referente a assunto tão polêmico. É verdade que depois disso haverá muito chão pela frente: a votação no segundo turno na Câmara, em seguida a tramitação e mais duas votações no Senado e finalmente a aprovação de legislação complementar. Mas se conseguir a primeira votação em 5 de agosto – ou mesmo com um pequeno atraso – o governo acrescentará enorme credibilidade à sua promessa de ter a reforma da Previdência totalmente aprovada até o final deste ano. Observadores experientes duvidavam da viabilidade dessa agenda. Sua realização, portanto, deve acrescentar alguns pontos no lado positivo da imagem da administração Lula. É importante destacar esse movimento de longo alcance neste momento em que toda a atenção se concentra no debate em torno de pontos específicos do projeto de reforma. Mas é claro que tudo depende de qual reforma se votará. Essa que saiu da Comissão Especial é um avanço efetivo em relação ao quadro atual, embora seja um retrocesso em relação à proposta original. Segundo os dados do Ministério da Previdência, perdeu-se pouca coisa. O primeiro projeto propiciaria uma economia de R$ 52 bilhões nos próximos 20 anos. Na forma atual, o ganho para as contas públicas será de R$ 50 bilhões. Convenhamos, dois bilhões de reais, nesse tipo de conta, é mixaria. Observe-se ainda que se trata não de eliminação, mas de redução de déficit do sistema de aposentadoria dos servidores públicos. Modesta redução. Sem a reforma, o déficit acumulado previsto para os próximos 20 anos chegaria a R$ 602 bilhões. Com a reforma, na versão atual, cairia para R$ 552 bilhões. Na perspectiva de quem sempre vê a metade cheia do copo, pode-se dizer que ao menos se conteve a expansão descontrolada do rombo. Pelo lado da metade vazia, conclui-se que o déficit previdenciário continuará sendo o maior problema das contas públicas, a principal fonte da despoupança do Estado e, nesse sentido, um entrave ao crescimento na medida em que limita a capacidade de investimento dos governos federal, estaduais e municipais. Portanto, em poucos anos será necessário voltar ao assunto. Paciência, é o que acontece em todos os países. As pessoas vivem cada vez mais, de modo que aumenta o número de aposentados em relação aos que estão na ativa e contribuindo para o sistema. Assim, em toda parte, as reformas tratam de atrasar as aposentadorias, aumentando-se a idade mínima e o tempo de contribuição, e reduzir benefícios mais generosos concedidos nos tempos das vacas gordas. O caso brasileiro tem todos esses ingredientes e algo especial. Em praticamente todos os países, os servidores públicos trabalham, ganham e se aposentam com algumas vantagens em relação aos trabalhadores do setor privado. Mas no Brasil os privilégios concedidos aos servidores em geral e os superprivilégios concedidos a alguns servidores muito especiais passaram longe de qualquer limite razoável. Este, aliás, é um resultado secundário da polêmica em torno da reforma da Previdência e da reação dos juízes. Ficou evidente a necessidade de uma outra reforma – a de todo o setor público, seu funcionamento e sua estrutura salarial. Aliás, é outra das reformas que empacaram no governo FHC. Já se tratou bastante da primeira grande distorção. Para os trabalhadores do setor privado, o INSS paga aposentadoria média de R$ 380. No setor público, a média de um funcionário aposentado no Executivo federal é de quase R$ 2.300. No Legislativo (Câmara e Senado), R$ 7.900. E no Judiciário, R$ 8.000. Decorre daí que o Brasil, primeiro, gasta com seus aposentados proporcionalmente mais do que os países ricos. Aqui, os gastos totais com Previdência representam 11,5% do Produto Interno Bruto (PIB), contra 9% na média dos países mais desenvolvidos. Aqui, o gasto com Previdência dos servidores equivale a 4,7% do PIB. Entre os ricos, 1,7%. Conclusão: o sistema de aposentadoria dos servidores é muito mais generoso que o do INSS e, assim, fonte de concentração de renda. Mas há também uma enorme distorção dentro do funcionalismo público. Considere-se a carreira de professor de universidade federal. No regime de 40 horas semanais, começa com salário de 880 reais e chega ao final da carreira, como titular, com R$ 3.500. Pergunta-se: será que um professor titular de universidade federal “vale” a metade de um embaixador ou um terço de um delegado da Polícia Federal? Sim, porque o diplomata chega ao final da carreira com R$ 6.900 e o delegado com R$ 9.200. A função do juiz é nobre e crucial para o funcionamento da sociedade democrática. Mas será que isso justifica o vencimento médio de R$ 26 mil auferido pelos desembargadores do Tribunal de Justiça de Minas Gerais? A proposta de reforma da Previdência em seu estado atual determina que o teto salarial de todo o funcionalismo público será de R$ 17 mil, o vencimento de um ministro do Superior Tribunal Federal. Para os Estados, haverá sub-tetos. No caso do Judiciário, o magistrado estadual poderá ganhar 75% do teto federal, portanto R$ 12.800. Os juízes estão reivindicando R$ 15.400 e é provável que levem pelo menos uma parte. Mas a distorção em relação às demais carreira de Estado continuará gritante. E como se chegou a esse ponto? Com legislação, digamos, flexível que permitiu as interpretações destinadas a dar o pulo de gato. Nenhum funcionário pode ganhar mais que o presidente da República, diz a lei. Mas isso só se refere ao salário base, não às gratificações e vantagens pessoais, diz o jeitinho. E assim, ganham mais as categorias com maior capacidade de encontrar brechas legais para criar as tais gratificações e vantagens. Não por acaso, os funcionários que lidam com as leis, juízes e promotores, levam os maiores salários. Ou seja, não há qualquer critério que considere a importância relativa das diversas carreiras do Estado. E, dentro das carreiras, não há vestígio de mérito ou avaliação de competência. Por que os magistrados de Minas ganham R$ 10 mil mensais a mais que os paulistas? Trabalham mais? Decidem mais depressa e com maior brilho? Não, simplesmente são mais criativos na definição dos próprios salários. A distorção ocorre nas demais carreiras. Se um professor de universidade federal escreve um livro a cada dois anos, publica nas melhores revistas, dá muitas aulas, comanda pesquisas e ganha o Prêmio Nobel, vai ganhar os mesmos R$ 3.500 do colega que mal aparece para dar uma aulinha. A reforma da Previdência colocou todo mundo no mesmo saco, e não havia como fazer diferente neste momento. Mas ficou claro que o setor público precisa de mais, e profundas, mudanças. Publicado na revista Exame, edição 798, data de capa 06/08/2003
AS MUITAS DISTORÇÕES DO SETOR PÚBLICO
- Post published:9 de abril de 2007
- Post category:Coluna publicada em O Globo
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