ALCA A LA CARTE

. A Alca não é uma sentença de morte Cresce o número de empresários brasileiros que vêem no acordo das Américas uma grande oportunidade para fazer negócios A novidade encontrada por Brasil e Estados Unidos foi a Alca “a la carte”, tal como vem sendo conhecida a proposta apresentada pelos dois países à Oitava Reunião Ministerial da Área de Livre Comércio das Américas, em Miami, 21 e 22 de novembro. “A la carte” porque cada um dos 34 países envolvidos poderá montar seu próprio prato e decidir com quem vai partilhá-lo. O acordo básico, obrigatório para todos os países do bloco, estabeleceria princípios e regras gerais, palatáveis para todos. A partir daí, cada país decidiria qual negócio faria com qual parceiro. O Beasil, por exemplo, poderia aceitar regras que validassem aqui as patentes e os direitos de propriedade intelectual dos produtos de alta tecnologia desenvolvidos por companhias das ilhas de São Vicente e Granadina, mas não das empresas americanas ou canadenses. De seu lado, os Estados Unidos poderiam derrubar todas as barreiras à importação de suco de laranja da ilha de Santa Lúcia, mas não do Brasil. Caricaturas à parte, é esse mesmo o espírito da Alca “a la carte”: um texto genérico seguido de acordos plurilaterais. A argumentação por trás disso, como tem sustentado o chanceler brasileiro Celso Amorim, estaria nas enormes diferenças entre os 34 países envolvidos no tratado (todos das Américas, exceto Cuba). As diferenças são evidentes. A Alca vai dos Estados Unidos com seu PIB superior a US$ 10 trilhões às ilhotas do Caribe, com populações na faixa dos 100 mil habitantes e economia baseada na exportação de bananas, aliás já favorecidas no mercado americano. Mas a evidência dessas diferenças torna óbvio que fatalmente haverá tratamentos caso a caso, em particular para os muito pequenos, qualquer que seja o acordo final. Na verdade, a Alca “a la carte” apresenta outra vantagem, esta sim decisiva para o momento. Impede mais um fracasso em negociações internacionais de alto nível, que seria o terceiro depois dos impasses de Cancun (no âmbito da Organização Mundial do Comércio) e de Trinidad Tobago (no universo da Alca). Nesta última reunião, a delegação brasileira, sob comando exclusivo do Ministério das Relações Exteriores, manteve atitude tão hostil ao andamento das negociações que provocou reações externas e críticas internas. Das negociações que se seguiram em Brasília, resultou uma posição menos dura do governo brasileiro, que, ao final, combinou com as necessidades atuais dos Estados Unidos. Já envolvido na sua reeleição, o presidente George Bush não tem condições de propor acordos de livre comércio que venham a prejudicar empresas de estados que têm preciosos votos no colégio eleitoral. Por exemplo: o Brasil quer reduzir as barreiras à exportação de suco de laranja, assunto que não passa pela cabeça dos agricultores da Flórida, justamente o estado que deu a vitória a Bush em 200. Assim, o chanceler Amorim e o representante comercial dos Estados Unidos, Robert Zoellick, espécie de ministro do comércio, chegaram a um entendimento, no início de novembro, depois de semanas seguidas de trocas de farpas. Um acordo genérico mantém de pé a idéia da Alca e dá tempo para que os países desenvolvam negociações plurilaterais ou mesmo bilaterais. Tudo considerado, talvez seja um bom quebra-galho para o Brasil, se for apenas um quebra-galho. Explica-se: se vingar, ao final, a Alca “a la carte”, isso significará tudo menos uma área comum de livre comércio. O regime comercial resultante será parecido com o do ICMS brasileiro, cada estado com sua própria legislação. De modo equivalente, empresas que negociassem no âmbito da Alca enfrentariam regimes diferentes em cada país ou bloco. Empresários internacionais, presentes em Miami, manifestaram sua oposição a essa idéia que para eles seria simplesmente um enorme fracasso, uma não Alca. Nesse caso, para os demais países o negócio seria apenas um acordo bilateral com os EUA, o maior mercado do mundo. Mas se a proposta “a la carte” servir apenas para o Brasil ganhar tempo, então pode ser uma boa providência para as circunstâncias. A verdade que o governo Lula não tem uma sólida opinião formada sobre o tema. Além disso, como chama a atenção o economista Marcos Jank, presidente do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais, Icone, o Brasil precisa de menos ideologia e mais estudos. Diz ele que não existe ainda um estudo que mostre, número por número, qual seria o resultado líquido para a economia brasileira de uma Alca abrangente. Inversamente, também seria preciso avaliar a consequência econômica de o Brasil ficar de fora da Alca. Basicamente, Jank entende que o Brasil não pode ficar fora, já que os acordos de livre comércio, multi ou bilaterais, continuam se fazendo. No momento, nota, já são mais de 200 os acordos de livre comércio em vigor e outros tantos em negociação. Nenhum país que pretenda ser um grande exportador, como precisa o Brasil, pode ficar fora. Já há boas contribuições aos estudos. Uma pesquisa da Fundação Dom Cabral, de Belo Horizonte, mostrou dados eloquentes: mais de 70% das empresas consideram a Alca como uma oportunidade; e 77,4% consideram-se preparadas para competir. A pesquisa baseou-se em questionários enviados para as mil maiores empresas de capital nacional. A Dom Cabral recebeu 121 respostas, todas apresentadas pelo principal executivo da empresa, sendo, portanto, amostra significativa. Pode-se dizer que visão desses executivos é bastante realista. Não acham que a Alca será um passeio. Se veêm oportunidades para suas empresas, também acham que os concorrentes diretos estão igualmente preparados. E para 57% dos executivos brasileiros consultados, a Alca privilegiará as empresas já internacionais, principalmente as multinacionais norte-americanas. Mesmo assim, as grandes empresas brasileiras “se consideram prontas para o acirramento da disputa”, embora isso não seja verdade para as menores, conforme uma das conclusões do estudo. E, quando perguntados sobre os maiores obstáculos à internacionalização de suas empresas, os executivos citam em primeiro lugar as “barreiras impostas pelo ambiente competitivo brasileiro”, ou seja, o “custo Brasil” (impostos, juros, infraestrutura econômica e institucional). Em segundo lugar, citam as barreiras internas à própria empresa (capacidades e recursos para atuar lá fora). Só em terceiro lugar aparecem as barreiras situadas no exterior. O “custo Brasil” também tem sido apresentado pelos empresários protecionistas como um obstáculo definitivo à abertura comercial. Para eles, seria impossível competir dado o ambiente local hostil aos negócios. Mas tanto a pesquisa da Fundação da Dom Cabral quanto a da Booz Allen mostram que a internacionalização, a ser iniciada pela exportação, pode ser justamente uma maneira de fugir do “custo Brasil”, quer pela obtenção de receitas em moeda forte, quer pelo financiamento mais barato para empresas que se instalam em países de custo menor. De novo, a abertura aparece como solução, não como sentença de morte. É preciso desenvolver esse ponto de vista, sem esquecer o outro, essencial: o maior inimigo da necessária internacionalização das empresas brasileiras, se o objetivo é o desenvolvimento acelerado, está aqui mesmo. É o “custo Brasil”, problema nosso, não o inimigo externo. Publicado na revista Exame, edição número 806, data de capa 26/11/2003

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