ACORDES E DISSONÂNCIAS NO GOVERNO LULA

. Qual é a música, maestro? Palocci conduz a política econômica com firmeza e – apesar dos acordes dissonantes – os resultados vão aparecendo   Olhando em retrospectiva, parece uma orquestração com efeitos eficientes. Primeiro movimento: o governo de Luís Inácio Lula da Silva promete e cumpre ao aplicar uma política econômica ortodoxa. Segundo movimento: o mercado entende, vende dólares e, sobretudo, volta a comprar títulos da dívida externa brasileira. O papel mais negociado, o C-Bond, emitido pelo governo, ultrapassa os 78 centavos por dólar de valor de face, depois de ter caído abaixo dos 50 no auge da crise de confiança. Com isso, o risco Brasil (diferença entre a taxa de juros de um papel brasileiro e a do título do governo americano de prazo equivalente) se aproxima dos mil pontos (ou dez pontos percentuais) depois de ter chegado perto dos 2.400, em setembro do ano passado. Terceiro movimento: o Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores, reunido no final de semana de 15 e 16 de março, oficializa a política econômica. Inclui na resolução: a necessidade do superávit primário das contas públicas; a prioridade ao combate à inflação via juros altos; e o objetivo de realizar as reformas da Previdência e Tributária, considerando que o problema central do Brasil é fiscal. Talvez até mais importante que os itens incluídos foram os excluídos. O texto rejeita formalmente “algumas alternativas que vêm sendo mencionadas às (atuais) políticas de ajuste” – ou seja o Plano B- e classifica como “retrocessos” o uso do controle de preços para controlar a inflação e a imposição de controles cambiais. Quarto e atual movimento: os índices e as expectativas de inflação começam a ceder. Importante destacar o maestro, o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, que vem conduzindo a orquestra com suavidade e firmeza. A cada passagem, acrescenta uma nova nota. Por exemplo: ao apresentar, dias atrás, dados referentes ao endividamento público, deixou claro que o superávit primário nas contas públicas não é provisório para este ano, mas vale para todo o período do governo Lula. E por mais quatro se a próxima administração quiser manter a trajetória de queda da dívida pública. Um solista a destacar é o senador Aloizio Mercadante (PT-SP), líder do governo, pela sua significativa autocrítica em discurso na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado. Disse, em referência à prática oposicionista do PT: “Se nosso discurso fosse tão bom, não teríamos perdido por duas vezes a eleição presidencial. Tivemos que repensar nosso discurso, nosso programa e nosso projeto. Por esse motivo vencemos.” Respondendo aos ataques de senadores do PSDB e PFL, segundo os quais a oposição petista ao governo FHC impediu a aprovação das reformas, Mercadante lembrou que aquela administração tinha ampla maioria e poderia ter votado o que quisesse, mas encaixou a ressalva: “Ainda que a Oposição (petista) possa ter contribuído para não aprovar coisas relevantes para o País. E estava errada quando não contribuiu”. Não foi ato falho nem um toque gratuito. O senador fez questão de ressaltar a história em seu site pessoal, colocando lá os editoriais em que os jornais O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo aplaudiram o mea culpa. Saiu assim no site: “Mercadante na mídia: editoriais sobre a autocrítica do líder do governo”. Assumido. Esses movimentos, em conjunto, curam uma esquizofrenia que ameaçava a credibilidade da política econômica. Ela estava em clara contradição com documentos oficiais do PT e com práticas anteriores. O discurso havia mudado durante a campanha presidencial do ano passado, especialmente com a Carta ao Povo Brasileiro, assinada por Lula em junho. Mas era um texto de campanha, do candidato, não do partido. Agora não. A política econômica é do partido e a virada foi explicitada. O sentido é claro: o PT não operou uma mudança oportunista, do partido que, no poder, esquece as promessas de campanha. O Diretório Nacional e as principais lideranças estão dizendo que o PT só ganhou (e levou) porque mudou antes e mudou para o centro. A questão é saber como vai seguir essa sinfonia. Há problemas dentro e fora da orquestra. Dentro, persistem dissonâncias. Na segunda-feira seguinte ao encontro do Diretório Nacional, 17 de março, o economista Paul Singer, petista tradicional, publicou no jornal Valor Econômico um artigo teórico, sem ofensas, mas cujo título não deixa dúvidas: “O medo vence a esperança”. Inverte a frase do presidente Lula para explicar sua vitória e arrasa com a opção ortodoxa de política econômica – a que “tem medo da inflação acima do tudo” e “vê o futuro ameaçado pelos desequilíbrios financeiros”. Singer defende a heterodoxia, que propõe menos juros, mais crédito e mais investimento público já, tudo para estimular o crescimento já, com o qual, diz, tudo se resolveria. Quanto à ameaça de inflação, sustenta que um pacto social permitiria “a contenção de preços e salários”. Em outras palavras, condena a opção do Diretório Nacional e defende justamente o Plano B rejeitado na resolução oficial do PT. Qual o tamanho dessa dissonância interna? De certo, sabe-se que a resolução foi aprovada com cerca de 70% dos votos do Diretório Nacional. É ampla maioria, mas 30% formam uma dissidência significativa. Como agirão? É possível que parte dos dissidentes – a turma da esquerda mais radical – abandone o partido, como, aliás, até sugeriu o senador Mercadante. Poucos, entretanto, farão isso, pois o precedente é perigoso. Quem deixa o PT tem sobrevida política muito curta. Mais provável é que o pessoal do Plano B fique calado, mas à espera de um eventual fracasso da ortodoxia. Por isso a equipe econômica tem ressaltado tanto a evidente e acentuada melhora dos indicadores. Por isso também o presidente Lula antecipou o prazo de envio ao Congresso dos projetos de reforma previdenciária e tributária. É claro que, por mais pressa que se tenha, não há chance de votar essas reformas antes do final do ano. Muitos analistas experientes, como Mailson da Nóbrega, acham que uma reforma previdenciária será votada, na melhor hipótese, em 2004 e que será um êxito se o governo conseguir isso. Mas o mais importante para o momento são as expectativas. Um rumo bem definido para a política econômica e para as reformas cria um ambiente positivo – como já criou – e isso vai derrubando os indicadores negativos, já que estes pioraram por causa de uma expectativa extremamente negativa em relação ao governo Lula. Como disse o secretário de Assuntos Internacionais da Fazenda, Otaviano Canuto, basta “emplacar” uma das reformas, sobretudo se for a da Previdência, e o risco Brasil cairá de forma significativa. Além da previdenciária, Canuto relaciona outras três reformas prioritárias: a tributária, a nova Lei de Falências (estimuladora do crédito, ao dar mais garantias aos credores) e a autonomia do Banco Central, tudo aliás previsto no acordo com o FMI, recém revisto e assinado. Também está tudo em andamento no Congresso Nacional. O que, de sua vez, explica o esforço do PT de capturar o PMDB para a base governista. Mais do que nunca, precisa de votos parlamentares. Mesmo porque, no quesito do voto popular, surgiram sinais de alerta. Não houve novas votações, mas a última pesquisa de intenções, da CNT/Sensus, mostrou queda na avaliação do governo Lula. Seus índices positivos ainda são muito expressivos, mas perderam, em média, uns dez pontos em pouco mais de um mês. Tudo considerado, a orquestra de Lula precisa acelerar o andamento da sinfonia. Nas reformas e nos programas sociais. Publicado na revista Exame, edição 788, data de capa 26/03/2003

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