A VELHA ESQUERDA NÃO FOI PARA O GOVERNO

. Sem medo de velharia O êxito da equipe de Palocci – e a gritaria dos setores radicais – mostra que no governo não há hoje lugar para o superado receituário econômico petista “Quase tive um ataque quando li aquilo . . . Estou histérica”. Assim, a economista Maria da Conceição Tavares resumiu seus sentimentos em relação ao documento “Política Econômica e Reformas Estruturais”, divulgado pelo Ministério da Fazenda no último 10 de abril. Embora o calhamaço de 95 páginas seja assinado pelo ministro Antonio Palocci, a economista, em entrevista à Folha de S.Paulo, preferiu atribuí-lo ao secretário de Política Econômica do Ministério, Marcos Lisboa, um ex-aluno seu, definido como “um bom menino que adorava fazer modelos matemáticos e adora até hoje”. Maria da Conceição Tavares está hoje com 73 anos. É um símbolo do pensamento econômico da esquerda, uma referência do PT ao longo destes anos. Lisboa, 38 anos, era diretor de Ensino de Pós-Graduação da Fundação Getúlio Vargas antes de assumir seu posto no governo. É considerado um dos mais brilhantes economistas de sua geração, não é filiado ao PT e certamente não partilha das idéias de sua antiga professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Para resumir, do ponto de vista da esquerda tradicional, Lisboa não passa de um neoliberal, com a toda a conotação negativa que o termo tem para esse pessoal. Além disso, segundo Conceição, Lisboa não manda nada na política econômica, que seria conduzida exclusivamente por Palocci, “um cara inteligente e experiente”, com administração correta até o momento. E se fosse assim, a história não teria interesse maior do que se encontra em um debate entre economistas de linhas diferentes. Um episódio simples, excluindo-se, por certo, os ofensivos ataques pessoais desferidos por Conceição. Mas não é simples assim. A bronca de Conceição verbaliza o desconforto dos economistas tradicionais do PT ou historicamente ligados ao partido. Eles simplesmente não foram para o governo. E se tivessem ido, estariam aplicando política bem diferente dessa de Palocci que, aliás, jamais integrou o grupo dos economistas do partido. Curiosamente, entretanto, é o mesmo Palocci, como coordenador de campanha, quem assina a introdução de um documento denominado “Ruptura necessária”, aprovado em dezembro de 2001 no XII Encontro Nacional do PT, para servir de base ao programa de governo do então candidato Luís Inácio Lula da Silva. Nesse “Ruptura . . .” está o pensamento econômico clássico do PT, assim como no texto mais amplo intitulado “Um outro Brasil é possível”, publicado pelo Instituto de Cidadania, a ONG de Lula, em meados de 2001. Há, portanto, uma diferença enorme entre o que diziam os economistas do PT (e seus quadros políticos) e a política posta em prática por Palocci neste governo Lula. Essa diferença tem sido claramente expressa por outro economista tradicional do PT, Paul Singer, da Universidade de S.Paulo. Ele está no governo, mas numa secretaria do Ministério do Trabalho, cuidando de trabalho solidário e, portanto, a quilômetros de distância da elaboração da política econômica. Sobre esta, Singer escreve regularmente no jornal Valor Econômico. Com elegância, distante do tom ofensivo de Conceição, Singer expõe, no entanto, a mesma divergência. Seu artigo de segunda-feira, 28/04, leva o título “Ajuste estrutural: interno ou externo?”. É o centro da divergência. Para o PT, o grande problema da economia brasileira no tempo de FHC era a vulnerabilidade externa, marcada pela dependência de capital financeiro volátil, e associada à fragilidade financeira do setor público, esta causada pelos juros altos para atrair aquele capital. Para pagar montanhas de juros, o governo FHC comprimia as demais despesas públicas, com isso provocando recessão e má distribuição de renda. Assim, a estabilidade alcançada pelo real, valorizado e ancorado no dólar até 1998, teria provocado o desastre do aumento da dívida pública e da carga de juros. Desse ponto de vista, não há problema estrutural nas contas públicas. O déficit seria apenas financeiro, isto é, causado pela necessidade de manter os juros altos para atrair capitais especulativos. Bastaria derrubar os juros que o país voltaria a crescer e tudo se resolveria quase automaticamente. E para derrubar os juros bastaria aumentar espetacularmente o superávit do comércio externo. Esses dólares bons dispensariam os dólares ruins, os voláteis, e a fragilidade externa estaria eliminada. Com isso, cairiam os juros internos e o país voltaria a crescer, com o que aumentariam as receitas de impostos, equilibrando-se as contas públicas pelo caminho do desenvolvimento. É a tese dos “desenvolvimentistas”, como define Paulo Singer. Desse ponto de vista, o governo, segundo sugeriu o economista Reinaldo Gonçalves, filiado ao PT, deveria controlar o comércio externo, restringindo as importações e forçando a sua substituição. Deveria ainda impor controles sobre o movimento de capitais, remessas de lucros, dividendos e royalties, além de penalizar com impostos altíssimos as viagens ao exterior. E a taxa básica de juros poderia ter sido reduzida para 15% no dia 2 de janeiro, disse Gonçalves em entrevista ao Estado de S.Paulo (27/04). O economista também não está no governo, embora tenha participado da formulação do programa econômica da campanha. Pois era exatamente isso que os investidores locais e internacionais achavam que iam acontecer quando, no ano passado, começaram a se livrar os títulos da dívida pública brasileira e a trocar reais por dólares para cair fora do país antes da posse de Lula. Foi nesse momento, com o dólar escalando para R$ 4,00 e o risco Brasil chegando aos dois mil pontos, que Lula, com seu núcleo de apoio, percebeu que a política econômica do velhos amigos o levaria ao desastre antes mesmo de começar. Daí vem a atual política econômica, que parte de um pressuposto contrário: todos os problemas da economia brasileira, durante e antes da era FHC, decorrem do desajuste estrutural das contas públicas (o desequilíbrio fiscal). Os juros são altos porque o governo despoupa e precisa ir a mercado tomar emprestado. Os capitais externos são necessários porque a poupança interna é insuficiente. Se para o velho pensamento petista o governo gasta pouco com o social, para a nova política econômica, exatamente aquela expressa no documento escrito pelo secretário Marcos Lisboa, o governo gasta muito e mal. A maior parte do dinheiro público, diz, não vai para os pobres e, com frequência, vai para os mais ricos, como os recursos da Previdência Pública. Daí a necessidade (e a justiça) de se cobrar contribuição dos inativos. Se para o velho petismo é preciso ampliar o gasto social para todos e universalizar os serviços públicos, a opção do Ministério de Palocci é para focar o gasto nos setores mais pobres. Se para Conceição, por exemplo, o governo FHC asfixiou o setor público por excesso de ajuste fiscal, para Lisboa, o governo FHC pecou por falta de ajuste fiscal. De fato, o documento do Ministério da Fazenda registra que se o governo FHC tivesse feito um superávit primário nas contas públicas de 3,5% do PIB desde 1994, a dívida pública, também em proporção do PIB, teria sido cerca de metade da efetivamente observada em dezembro de 2002, mantidas todas as demais políticas, inclusive o real valorizado. (Aliás, era exatamente o que dizia Pedro Malan, os juros são altos e o real valorizado porque falta o ajuste fiscal). Assim, a atual política considera como prioridade máxima o ajuste definitivo das contas públicas. Por isso elevou o superávit primário, aumentou juros para debelar a inflação e não está impedindo a entrada de capitais de curto prazo. Para esse ponto de vista, a estabilidade fiscal duradoura é a chave para reduzir juros e recuperar crescimento. Além disso, incluiu na agenda uma série de reformas microeconômicas, como lei de falências, destinadas a criar um bom ambiente de negócios, idéias que passam longe do velho ideário econômico do PT. É essa política que afastou o medo da velha. E que funciona. E assim, Maria da Conceição Tavares sofre uma outra grande decepção. Em 1986, foi uma espécie de madrinha dos jovens economistas do Plano Cruzado, que parecia ser a grande virada depois da derrocada do regime militar. Agora, depois de tantos anos aguardando a vitória de Lula, o vê no governo aplicando, com resultado, a política que ela sempre combateu. De certo modo, o PT deve uma satisfação a ela e a todo seu pessoal que está atônito com os novos rumos. Na Alemanha, o chanceler Gehard Schroeder está com um problema semelhante. A ala esquerda e os sindicatos ligados a seu partido, o Social Democrata, rejeitam seu programa de reformas. Por isso, o partido vai fazer um congresso em 1o de junho para rever as idéias. O PT vai precisar fazer algo parecido. Publicado na recisa Exame, edição 791, data de capa 07/05/2003

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