O DRAMA DOS PETISTAS BEM INTENCIONADOS

. Patrimônio de afetação? O que é isso companheiro? Coloque-se no lugar do presidente Lula: você esteve em campanha por mais de 30 anos, convencido de que estava ao lado do povo sofrido, contra os ricos e poderosos; você não teve tempo e condições para estudar, porque estava sempre na estrada, mas professores, especialistas e sábios, brasileiros e estrangeiros, garantiam que você estava no lado certo e lhe ofereciam idéias, planos e propostas para mudar toda essa injustiça aqui e lá fora; você, finalmente, ganha as eleições e se prepara para comandar a grande mudança. Pela primeira vez em 500 anos de história do Brasil, o povo está no poder, com você. É agora. Aí vem o seu ministro da Fazenda, velho companheiro, também ele, trazendo propostas para o problema da habitação. Você se anima: “Ótimo, dar casa aos pobres, vamos resolver isso”. O ministro vacila: “Bem, resolver, não, porque a coisa está difícil, mas tem aqui algumas medidas que estimulam a construção civil. Dá emprego, o senhor sabe”. “Sim, sim, claro”, você diz, apressado. “O que vamos fazer?” “Bom, precisamos criar o patrimônio de afetação”, diz o ministro. “Patrimônio do quê? Quê gozação é essa?” – você explode, com todo o direito. Eis aí o drama dos petistas bem intencionados. Prepararam-se para uma grande viagem histórica e caíram ali no dia a dia do governo de um país grande e complexo, em um ambiente econômico, político e internacional bastante diferente o que imaginavam. E agora? Alguns simplesmente não se conformam. Agarram-se às bandeiras históricas, denunciam os desvios do companheiro Lula e votam contra no Congresso. Desses, alguns ainda acreditam que o governo Lula vai mudar e a verdade histórica aparecerá. Lutam pela mudança dentro do governo. Outros já perderam a esperança e estão em rota de saída. Outros se conformam provisoriamente. Tudo bem que não dá para fazer a revolução agora. A coisa está mais para patrimônio de afetação e alienação fiduciária do que para desapropriar e distribuir milhões de moradias. Mais para acordo com o FMI do que a construção de uma nova ordem mundial. Mais para superávit primário do que os grandes projetos públicos. Mas, por enquanto, pensam. Depois que se der um jeito nessa situação e as coisas se equilibrarem, o verdadeiro governo petista vai aparecer e o salário mínimo vai dobrar. Outros, os realistas, já perceberam que as bandeiras históricas são isso mesmo – históricas. E que o mínimo nunca vai dobrar, que não tem dinheiro para isso nem hoje nem nunca. Deixo ao leitor e à leitora o jogo de colocar as pessoas nas identificações acima. O assunto aqui é mostrar que esses diferentes estados de espírito aparecem em todas as manifestações e ações do governo. E que o presidente Lula, em pessoa, se divide. Ok, ele toca e dá força ao ministro Antonio Palocci e sua política econômica, hiperrealista. Mas cria a Câmara da Política de Desenvolvimento Econômico, para tratar dos grandes projetos. Para pensar neles, esclareceu o presidente, provavelmente por ter percebido que o mercado – essa droga de mercado – desconfiava que a nova Câmara ameaçava a continuidade da política de ajuste fiscal, combate à inflação e câmbio flutuante. Não, essa política não muda, garantiu o presidente em várias ocasiões na semana passada, depois da instalação da nova Câmara. Então, para que serve essa nova burocracia? Talvez para manter vivos alguns sonhos, o que significa que não fará nada de prático. No fundo, é o mesmo comportamento do presidente na decisão do mínimo. Comprou os R$ 260,00 definidos por Palocci, mas fez horas de reunião com outros ministros e assessores, esperando que algum deles viesse não com bandeiras históricas – como a tese de que não há déficit na Previdência – mas com o mapa prático do dinheiro para pagar um aumento maior. Não apareceu o mapa, o presidente assinou os 260, mas não se conformou. Assim como não se conforma com a montanha de juros que paga todo mês. Mas paga. Assim como não gosta das reações do mercado, mas não vai contra elas. E assim vai. E vai complicado. A parte dos que se conformaram apenas provisoriamente fica o tempo todo tentando estabelecer as velhas políticas – aumentar os gastos e os controles do Estado em tudo que for possível, criar algumas estatais, cercear a empresa privada, como faz o ministro Humberto Costa que trata as operadoras de planos de saúde como bandidas. Enquanto isso, os realistas dizem aos empresários que é hora de investir e que terão garantias para isso. Realistas são mais eficientes e a coisa avança por aí. Afinal a crise econômica foi debelada, a estrutura macro está de pé, o país cresce com algum equilíbrio. Mas a agenda de longo prazo, a que pode aumentar a capacidade de crescimento com a criação de condições favoráveis ao investimento privado, essa se atrasa. Patrimônio de afetação neles. Publicado em O Estado de S.Paulo, 26/07/2004

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