A REVOLUÇÃO CULTURAL BRASILEIRA

. Revolução cultural, a boa A primeira idéia foi de Mao, com o objetivo de varrer da China qualquer resquício de capitalismo, divisão social de classes, elites e burguesias. Só deveriam sobrar trabalhadores puros. Deu errado. Muita gente morreu, de assassinato ou de fome ou por falta de cuidados, dada a enorme recessão e desorganização impostas ao país. E os resquícios ficaram. Logo depois, Deng Xiao Ping, sem alarde e sem nomear, lançou outra revolução cultural, na direção contrária: a reintrodução do capitalismo e seus valores. Essa funcionou. Há sinais de forte simbolismo. Depois de décadas na mesma marcha, um congresso do Partido Comunista, que permanece único e com poderes absolutos, finalmente mudou o nome oficial do regime, de socialismo para “economia socialista de mercado”. Está na cara que a palavra chave é mercado, tanto que o congresso admitiu a propriedade privada como fonte de produção e riqueza legítima, e não mais como simples roubo. Pode-se enriquecer na China capitalista e pode-se exibir isso. Ferrari e Louis Vitton estão lá e têm clientela. Segundo um estudo da consultoria Capgemini e banco Merrill Lynch, a China já tem 236 milionários, pessoas com investimentos financeiros líquidos acima de US$ 1 milhão. E esse número cresce nada menos que 12% no ano passado. O Brasil nunca foi socialista. Tem sido um regime capitalista, mas envergonhado e, digamos, meio atravessado. Por exemplo: não há capitalismo sem acumulação de capital, como lembrava Marx. O capital precisa se reproduzir permanentemente. Dito de outro modo, é preciso que pessoas e empresas ganhem dinheiro, de modo que o país como um todo tenha cada vez mais capital. Sendo assim, a sociedade deveria valorizar e premiar o “instinto animal” do empreendedor, o homem ou mulher que topa riscos para fazer capital e crescer. Mas ganhar dinheiro no Brasil não era de bom tom. Além disso, nunca se confiou no espírito empreendedor como instrumento para gerar crescimento. Assim, a legislação, em vez de abrir espaço para os negócios privados, tem, ao contrário, o espírito de controlar e fiscalizar. O traço cultural dominante diz que o empreendedor, deixado à solta, é um predador, um destruidor das relações sociais e, mais recentemente, do meio ambiente. Não é por acaso, portanto, que um cidadão, para abrir um negócio, tem que passar na Junta Comercial, nas receitas federal, estadual e municipal, no INSS, no Ministério do Trabalho, na defesa sanitária, no Ibama e por aí vai, não raro tendo que obter mais de uma licença em cada órgão. No Ibama, por exemplo, são necessárias três licenças, do projeto ao início das operações. Na média, são 152 dias para se iniciar um negócio, conforme indicou o estudo do Banco Mundial “Doing Business”. Argumenta-se: mas se não houver controle, o pessoal faz de qualquer jeito e estraga tudo. Mas a questão é saber como se faz o controle. Na Austrália, são necessários apenas dois dias para se abrir um negócio e colocá-lo em funcionamento e não consta que nosso meio ambiente tenha mais proteção que o deles. Ou que nossa sociedade seja mais humana que a deles. O viés da legislação brasileira é antiempreendedor, restringe a liberdade de empreender e nesse sentido é anticapitalista. E esse traço dominante é tão forte que bastou se iniciar alguma abertura pró-negócios para que se taxasse o regime de neoliberal. É o contrário, temos um regime que dá ao Estado poderes de fazer, financiar e, sobretudo, controlar e fiscalizar. Com um problema adicional: o Estado quebrou, já estourou o limite de sua capacidade financeira. Resultado, não tem dinheiro para fazer tudo que se espera dele. E é basicamente por essa necessidade que o Brasil também passa por uma revolução cultural permanente. Quer ver? Inflação, por exemplo. Há apenas dez anos, semanas antes da inauguração do Plano Real, muita gente ainda dizia que inflação não era o problema do Brasil, que nossa economia sabia conviver com ela. Ainda hoje, há pessoas dizendo coisa parecida, que o Brasil precisa crescer não importa a inflação. Mas parece que a maioria já não gosta de inflação e entende que, a médio prazo, nem um país cresce sem estabilidade de preços. É uma forte mudança de mentalidade. Outra foi a privatização de grandes estatais. Hoje, está claro para a maioria que o setor privado é mais competente para fazer aço e instalar telefones. Na privatização das telecomunicações, uma forte oposição, vinda de partidos de esquerda e meios militares, sustentava que entregar tais setores a empresas privadas, e ainda mais estrangeiras, era uma ameaça à segurança nacional. Hoje, poucos se lembram desse tema. Outra revolução cultural: há menos de dez anos se dizia que os bancos estatais estaduais eram necessários ao desenvolvimento regional e que nenhum governo federal teria força política suficiente para enfrentar os governadores e fechar tais instituições. Pois os bancos estaduais, na maioria, foram fechados e/ou privatizados, formou-se um claro consenso de que eram fonte autônoma de inflação e que por isso não poderiam continuar. Há poucos estados que mantiveram seus bancos e não consta que esses tenham mais capacidade de desenvolvimento do que os outros. Outra grande revolução cultural foi a Lei de Responsabilidade Fiscal, que estabelece limites e regras rígidas para a administração das finanças públicas. Pela primeira vez na história do país, o administrador público passou a ser responsabilizado por má gestão. Antes, o sujeito podia assumir o governo, quebrar o Estado e não lhe acontecia nada. Há muito político que fez isso, ante da lei, e continua por aí. Mas não têm sido eleitos. Acabou a tolerância com os que roubam mas fazem. Superávit primário das contas públicas foi outra grande mudança, muito recente. Trata-se da economia que o governo faz nas suas contas correntes, gastando menos do que arrecada, para pagar juros. Isso começou no final de 1998, quando estava todo mundo apavorado com mais uma crise financeira mundial. Suspeitava-se que, passada a crise, o superávit primário seria abandonado, pois muitas forças políticas, à direita e à esquerda, diziam que o governo não poderia adiar obras e serviços para pagar juros. Um argumento ridículo, pois se não pagar a dívida, o Estado quebra, perde todo financiamento e aí mesmo é que não faz nada. De todo modo, quando o governo do PT não apenas manteve, mas aumentou o superávit primário, essa revolução cultural estava confirmada. E agora se fala, sem maiores espantos, em aumentar o superávit. Em resumo, o país está aprendendo que não há Estado grátis. Que já se fez dívida, inflação e imposto para sustentar o gasto público exagerado e que agora é hora de fazer o caminho contrário. E de abrir espaço para quem quer fazer negócio e ganhar dinheiro no Brasil. Essa agenda está na praça e tem apoios no governo. O diabo é que outro lado do governo preserva os dinossauros do Estado grande. É o pessoal que sonha com a revolução cultural errada. Não é fácil mudar. Publicado em O Estado de S.Paulo, 20/09/2004

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