. O leitor e a leitora já ouviram falar da teoria conspiratória aplicada à história, à política, ao jornalismo. Diz que por trás de qualquer acontecimento há sempre uma conspiração ? oculta para o comum dos mortais, podendo ser desvendada apenas pelos mais espertos e mais bem informados.
Muitas vezes praticamos essa teoria sem perceber. Diante de um fato que nos surpreende, ainda que seja algo muito simples, o primeiro instinto é procurar uma causa oculta ? a "verdadeira"- já que não pode ser só isso que parece ser.
O que o governador Itamar Franco quis dizer ou fazer quando denunciou que o governo federal planeja mandar o Exército invadir Minas?
A desconfiança brota de uma certeza que nem se precisa formular: evidentemente o presidente Fernando Henrique jamais pensaria em invadir Minas. Logo, se o governador Itamar diz que FHC está planejando isso, só pode ser porque na verdade é ele, Itamar, e não FHC, quem está tramando alguma coisa. O que seria?
A mesma teoria conspiratória se aplicou diante da decisão do Banco Central de reduzir a taxa básica de juros para 17,5%, com viés de baixa, isso indicando que pode haver outra redução nas próximas três semanas.
Como no caso Itamar, o fator surpresa foi dominante. Mas se o governador de Minas costuma pregar peças, esse não é, nem deve ser o caso do Banco Central. Além disso, dispomos aqui de uma boa ciência econômica, bons economistas, espertos operadores do mercado financeiro, jornalistas que costumam estar por dentro e consultores que sabem das coisas.
Esse pessoal sempre antecipa o rumo das coisas, muitas vezes acerta na mosca. Pois desta vez, nenhum deles, rigorosamente nenhum acertou os 17,5%. Ninguém sequer chegou perto. Ora, como são todos sábios e espertos, só pode haver algo no ar que os diretores do BC sabem e todos os outros não.
Eis aí, outra conspiração. Nada mal para uma semana com feriado no meio. É difícil penetrar nos bastidores e descobrir conspirações. Por isso são conspirações. Se estivessem na cara, não teriam graça ? nem suscitariam especulações na imprensa.
Mas e se estiver na cara, tão clara como a luz do dia?
O Banco Central do Brasil, desde o ano passado, tem a obrigação de seguir uma política de metas de inflação. O Conselho Monetário Nacional fixou essas metas: 6% para este ano, 4% para o próximo, tolerando-se uma variação de dois pontos para cima ou para baixo. Mas o ideal é ficar mesmo no ponto médio.
A teoria econômica desenvolveu bons modelos para se projetar cenários. Você vai misturando a salada ? preços, investimentos, salários, empregos, consumo, contas públicas, comércio externo, safra agrícola, tarifas, cotação do dólar, situação dos outros países com os quais temos relações ? coloca tudo isso em fórmulas matemáticas, põe no computador e dá como será a situação lá na frente.
Claro, é sempre uma probabilidade. As coisas serão assim, se determinadas hipóteses se confirmarem. E sabemos que a realidade nunca se comporta exatamente como o modelo. Ainda assim é possível ir adaptando o cenário, de modo que se tem uma boa idéia do que pode vir a acontecer.
A taxa de juros é variável chave de política econômica. Juros altos desestimulam as compras a crédito e inibem os investimentos – pois quem vai aplicar seu dinheiro em algum negócio se pode ganhar mais aplicando a juros? E se o consumidor não compra e o empresário não investe, a economia pára ? e não há como os preços subirem.
Inversamente, juros bem baixinhos estimulam consumo e investimento ? e se todo mundo desanda a gastar, os preços sobem.
Entre a paradeira e a farra do consumo, há um ponto de equilíbrio, uma taxa de juros que produz a inflação desejada. No nosso caso, o serviço do BC brasileiro é aplicar a taxa de juros que leve a uma inflação de 6% neste ano e de 4% no próximo, inflação essa medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Ampliado, IPCA, do IBGE.
Há outros fatores determinando a taxa de juros, como o setor externo. Numa economia aberta, em que o investidor nacional ou estrangeiro pode escolher entre aplicar em reais ou em dólares, a taxa de juros local guarda relação com a externa.
Em termos simples: se aplicando em dólares o sujeito ganha 6% ao ano, sem risco nenhum, para aplicar em reais, com risco, precisa ganhar mais. Se não, os investidores vendem reais e compram dólares. Faltando dólares aqui, a cotação da moeda americana sobe, fica mais caro tudo que é importado ? como o petróleo ou trigo ? e isso vai bater onde? Nas metas de inflação.
Ou seja, quando se faz o cenário, é preciso levar em conta os juros internacionais e coisas como o preço do petróleo importado. Mas o ponto aqui é que dá para colocar tudo isso no prognóstico de inflação.
O Banco Central divulga de três em três meses um documento oficial chamado Relatório de Inflação ? está na página www.bcb.gov.br ? em que mostra essas contas todas. O último é de março, quando a taxa básica de juros estava em 19% ao ano.
Pois está lá escrito que com esses 19%, com os dados até fevereiro, a inflação deste ano ficaria em 6,3% – um pouquinho acima da meta – e a de 2001 em 3,3%, abaixo da meta.
Diz a teoria, por outro lado, que uma taxa de juros fixada hoje por qualquer banco central produz efeitos na cadeia econômica com defasagem de seis a nove meses.
Juntando tudo isso, que está escrito, pode-se concluir que o BC fez lá sua salada, enfiou os novos dados de março para cá ? sobretudo a inflação muito menor que a esperada em março, abril e maio – e verificou que com os juros básicos de 18,5% (em vigor desde abril), tanto a inflação esperada para este ano quanto para o próximo estavam abaixo da meta.
Pode ficar abaixo, mas não precisa nem convém. Ou seja, havia espaço para a redução dos juros. Daí os 17,5% com viés de baixa.
Olhando bem, estava na cara. Tão na cara que quase todos os analistas concordavam que havia espaço para a redução dos juros, mas ressalvavam que o BC só faria isso mais à frente.
Parte da culpa por essa interpretação é dos próprios diretores do BC. Eles vinham colocando muito peso em dois fatores externos ? preço do petróleo e juros nos EUA ? coisas que teriam desenvolvimento depois da reunião do Copom. Todo mundo pensou: eles vão esperar a reunião do petróleo, que já foi e indicou que o preço não sobe e talvez caia um pouco, e a reunião do banco central americano, que será nesta semana, dia 28.
Portanto, o Copom brasileiro se antecipou. Mas podia fazer isso. Bastava, na montagem do cenário, supor hipóteses piores, o preço do petróleo de hoje e mais uma alta nos juros americanos.
De todo modo, os 17,5% agora fixados devem influenciar a inflação do ano que vem, que já estava abaixo da meta mesmo com os juros de 19%. Como a inflação do primeiro semestre deste ano deve ficar em 2%, bem menor do que o esperado, há folga para chegar aos 6% no resto do ano.
Eis aí, seguindo a regra explícita da política de metas de inflação, pode-se chegar aos 17,5%, sem conspiração.
Mas a teoria conspiratória é imbatível. Pergunta-se: e quem garante que isso de meta de inflação é para valer? E se essa política for apenas um disfarce para . . . para o quê?
Pode haver aí uma outra discussão ? que a teoria de metas de inflação é uma besteira. Tudo bem, é uma discussão plausível. Nesse caso, porém, o razoável seria dizer o seguinte: o BC está se pautando por teorias e modelos equivocados e por isso comete grandes equívocos.
Não vamos avançar nessa discussão técnica, mesmo porque não houve contestações fortes à política de metas.
Mas vamos concluir que a alternativa é a seguinte: ou o BC simplesmente seguiu uma explícita e óbvia regra de meta de inflação e fez o certo; ou seguiu uma teoria errada e fez uma grande besteira.
Sem conspirações, em qualquer caso. Acredite o leitor, a leitora: sempre que estiver em dúvida entre uma explicação óbvia e uma teoria conspiratória, fique com o óbvio.
Se não, você pode acabar como o Itamar, vendo conspiração contra você por toda parte.
(Publicado em O Estado de S.Paulo, 26/06/2000)