A OPORTUNIDADE PARA AS REFORMAS

. As reformas, quem diria, foram parar na esquerda Então ficamos assim: reforma da Previdência agora é de esquerda. Ajuste fiscal também, é política progressista de redução de desigualdades. O que nos leva a uma interessante conclusão: se os neoliberais (ou chamados neoliberais, porque muitos odeiam a designação) continuam a favor do que eram, então será moleza aprovar no Congresso as reformas e o ajuste definitivo das contas públicas. Ficou quase todo mundo a favor, numa tendência política que se poderia chamar de neoliberalismo de esquerda, esquerda liberal, neoliberal progressista e assim por diante. Não é coisa nossa, mas uma invenção (premonitória, vê-se agora) da economista Eliana Cardoso que em novembro de 2000, em artigo no jornal Valor Econômico, já se definia como neoliberal de esquerda. Explicava, então: trata-se posição política que propõe uma mistura de economia de mercado – capital, propriedade privada, como forma de organizar a produção e comércio – com o ideal de uma melhor distribuição de renda. Na ocasião, quando o PT comandava uma feroz oposição ao governo FHC, tudo que tivesse a ver com economia de mercado era neoliberal de direita. Isso incluía o ajuste das contas públicas, as privatizações e as reformas. Em consequência, também eram de direita o Banco Central e sua política monetária de combate à inflação. O governo, se dizia, estava obsessivamente voltado para ajuste fiscal e estabilidade monetária, esquecendo-se do social e do crescimento. Agora, na era Lula, o presidente do PT, José Genoíno, foi o primeiro a consagrar a reforma da Previdência como de esquerda. Argumento cristalino: trata-se de eliminar uma fonte de desigualdades, o fato de 3 milhões de aposentados do setor público dividirem um bolo de R$ 60 bilhões/ano, enquanto os 18 milhões do INSS repartem R$ 88 bilhões. Ou ainda: o fato de 3 milhões de aposentados do setor público serem responsáveis por um déficit anual, coberto com impostos pagos por toda a sociedade, de R$ 55 bilhões, contra R$ 19 bilhões dos 88 milhões do INSS. Ora, e aqui já de acordo com idéias tradicionais, toda política que visa preferencialmente a igualdade é de esquerda ou ao menos predominantemente de esquerda. O contrário, o liberalismo, seria a política que visa proteger, antes de mais nada, a liberdade e o direito individual. Assim, o liberalismo tolera desigualdades para não ferir a liberdade individual. A esquerda, ao revés, aceita prejudicar a liberdade do indivíduo– impondo restrições à liberdade de empreender nos negócios, por exemplo, ou tomando mais imposto ou reduzindo a aposentadoria dos mais ricos – em nome da igualdade social. Nessa linha, a reforma da Previdência vai atingir o direito individual de pessoas que desfrutam de ou têm direito a aposentadorias privilegiadas em relação ao pessoal do INSS, para permitir uma distribuição mais equitativa do gasto público. De esquerda, portanto. É exatamente o que tem dito o presidente Luís Inácio Lula da Silva: a reforma da Previdência trata de eliminar uma fonte de desigualdades e um obstáculo ao crescimento do país, pois o dinheiro público utilizado para cobrir o déficit previdenciário poderia ser aplicado, por exemplo, em obras de infraestrutura. Ou então, na medida em que, com déficit menor, o governo precisasse tomar menos recursos da sociedade, na forma de impostos ou empréstimos, sobraria mais dinheiro para os negócios do setor privado. Em qualquer caso, se teria mais crescimento e mais emprego. Assim, a reforma da Previdência não apenas é de esquerda como elimina a maior parte do déficit público e abre caminho para um crescimento mais equilibrado do país. Eis aí, ajuste fiscal também é de esquerda. Tudo muito bem, dirão o leitor e a leitora, mas há anos que se fala exatamente da mesma reforma e do mesmo ajuste. Por que antes eram de direita? O presidente Lula deu uma dica. Na última reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, disse que “do ponto de vista das reformas, a esquerda é conservadora”. Acrescentou: “À vezes não queremos mudar nada, mas é preciso fazer as reformas”. Pode-se concluir daí que a idéia das reformas já era de esquerda (e, pois, progressista, instrumento de mudança), mas assim não era percebida pela esquerda ou pela parte dominante da esquerda. E aí passa o tempo, debate daqui, debate dali, a esquerda chega ao poder, não pode mais fazer bravata, encara os números de frente e pronto. A reforma da Previdência, que havia sido batizada neoliberal, é crismada de esquerda. Outra versão é mais oportunista. Diz que o PT era contra as reformas e as taxava de direita porque estava disputando o poder e assim tinha de ser contra tudo o que o governo FHC propunha. Aí é grave. Sugere que o PT sabia que as reformas eram importantes para o país mas dizia o contrário só para atrapalhar o governo. Mais grave ainda se o PSDB e o PFL pensarem do mesmo jeito e passarem a se opor às reformas – agora que são de esquerda, não é mesmo? – só para atrapalhar o governo Lula. Pobre país, se for assim. Melhor é esperar que o longo debate em torno das reformas e do ajuste fiscal esteja finalmente chegando a pontos de consenso, pelo simples e bom amadurecimento das idéias. Como lembrou outro dia o secretário de Política Econômica da Fazenda, Marcos Lisboa, há apenas dez anos quase nem se falava de ajuste fiscal nas faculdades de economia. E quando se falava, não era coisa boa. O documento lançado na última sexta pelo Ministério da Fazenda, “Política Econômica e Reformas Estruturais”, encontrado no site www.fazenda.gov.br, é um exemplo desse amadurecimento. Resume idéias de grupos variados de economistas e analistas políticos, numa espécie de consenso. Epa! Consenso? Eis aí, que tal um Consenso de Brasília para substituir o desgraçado Consenso de Washington? Ou Consenso Lula, já que o presidente gosta disso, uma mesa de debate e um acordo. Podemos ficar assim, portanto: as reformas são liberais porque reduzem o déficit público e abrem espaço para a economia de mercado; e são de esquerda porque reduzem desigualdades. Ou simples questão de bom senso e aritmética. Cada parlamentar que escolha seu motivo e dê seu voto e, como disse Lula, o país “conseguirá avançar dez anos em poucos meses”. Publicado em O Estado de S.Paulo, 14/04/2003

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