A LEI DE BIOSEGURANÇA

. Tempo perdido A clonagem terapêutica é hoje, talvez, a maior esperança da ciência. Trata-se de clonar tecidos ou órgãos a partir de células embrionárias. Imagine isso no futuro: toma-se um embrião de cinco dias e se induz o desenvolvimento de tecidos ou mesmo de um coração novinho em folha, que se forma uma vez tais células são implantadas no doente cardíaco. O mesmo para neurônios a serem implantados em doentes do mal de Parkinson. Ou um fígado zero bala para uma vítima de hepatite. Pode ser o maior avanço da medicina em séculos, um milagre que já está visível a olho nu. Há experiências adiantadas em laboratório pelo mundo afora, incluindo o Brasil. Não é coisa para amanhã, mas é certo que os cientistas chegarão lá. Ao examinar o projeto de lei de biossegurança, nossos deputados federais quiseram deixar a porta aberta para essa possibilidade e, explicitamente, permitiram a clonagem terapêutica. Por outro lado, na votação, havia uma pressão forte dos evangélicos, apoiados por parlamentares ligados à Igreja Católica, para que se proibisse a utilização de células embrionárias humanas em qualquer tipo de experiência científica. A pressão foi aceita. Ficamos assim, portanto: a clonagem terapêutica (de tecidos e órgãos) está permitida; o uso de células embrionárias, proibido. Ocorre que aquela clonagem só é possível a partir de células embrionárias. Ou seja, uma coisa anula a outra. A lei saiu equivocada, não serve para nada além de aumentar a confusão no setor. Há um importante debate no mundo todo sobre a utilização dos embriões humanos. Para se desenvolver a clonagem de um órgão, o embrião é destruído – o que suscita a questão: o que está sendo eliminado, apenas um conjunto de células ou uma vida humana? Ou ainda: em que momento começa a vida humana? Se for no momento em que se forma o embrião, como sustentam muitos teólogos de diversas religiões, então não se pode permitir à ciência que saia por aí eliminando embriões (vidas) na tentativa de se produzir um coração ou um feixe de neurônios. Já os cientistas argumentam que o ponto de partida de uma clonagem é um embrião de não mais que cinco dias, produzido in vitro, que não está no útero de uma mulher e que ainda está longe de ser um feto já com coração, por exemplo. Em resumo, concluem os cientistas, trata-se apenas de um feixe de células não definidas – e exatamente por serem indefinidas é que podem ser induzidas a diversos desenvolvimentos. A partir daí, o pensamento dominante entre cientistas sustenta que deve ser proibida a clonagem reprodutiva de humanos. Assim como já se clonam animais, como a Dolly (e a Embrapa brasileira já clonou bezerras), é possível fazer o mesmo com seres humanos. Mas isso, sim, traz um dilema ético e religioso insuperável. A clonagem é na base de ensaio e erro. Para uma Dolly, criam-se dezenas de seres “defeituosos”, que não vingam ou têm de ser destruídos. Ora, não se pode sequer imaginar a clonagem de uma série de bebês para que se escolha então o mais apto e se elimine os demais. Mas um feixe de células indefinidas não é um bebê – argumentam os cientistas. É vida humana do mesmo jeito – respondem os religiosos, sustentando que não se pode produzir embriões apenas para clonagem, ainda que terapêutica. Para a maioria dos cientistas, é aceitável a produção de células embrionárias in vitro. Isso já é feito em qualquer clínica de fertilização, o que é aceitável e legal. Casais que precisam de assistência médica para reprodução fornecem material para a produção de vários embriões. Depois que o casal consegue seu bebê, os demais embriões permanecem guardados nas clínicas, não podendo ser descartados. Pelo menos assim diz a lei, mas sabe-se que há descarte pois não há um controle efetivo sobre, por exemplo, a quantidade de material produzido. Ora, perguntam os cientistas, por que não utilizar esses embriões? Pelo mesmo motivo anterior, respondem os religiosos. Tudo isso, enfim, para mostrar que não há meio termo nessa história. Ou se pode ou não se pode fazer a clonagem terapêutica. Ou pode ou não se pode utilizar os embriões. Qualquer tentativa de conciliar posições leva a leis mais defeituosas que um clone mal sucedido – como foi o caso do projeto de lei de biossegurança aprovado na Câmara. Está certo que o Congresso é o local do debate, da busca de pontos comuns e equilíbrio. Mas é também o local onde as maiorias, legítimas, pelo voto, impõem seu ponto de vista. A tentativa de obter consenso em tudo gasta muito tempo e não raro chega a não-soluções. No mesmo projeto de biossegurança, que agora vai ao Senado e ali, por sorte, pode ser consertado, também se tentou um meio termo entre cientistas, agricultores e ambientalistas no tratamento dos transgênicos. Assim, liberar um transgênico vai exigir uma tal burocracia, a passagem por um tal número de instâncias, científicas e políticas, que o resultado provável é disputa jurídica, tempo perdido, energia gasta nos meios em vez de nos fins e, afinal, paralisia em outro crucial setor para o progresso. São os problemas de uma maioria parlamentar que reúne comunistas e evangélicos, representantes dos cientistas e ideólogos do meio ambiente, operários e patrões, etc. Amplas mesas de negociação podem ser uma imensa perda de tempo. Em tempo: nossa opinião é que não há força humana capaz de deter a clonagem terapêutica. As possibilidades de tratamento e cura são tão promissoras que não haverá como não tentar. Ou seja, ou o Brasil entra nesse processo e desenvolve essa tecnologia do futuro, para a qual nossos cientistas estão capacitados, ou logo será obrigado a pagar caro para importar essas células milagrosas. Publicado em O Estado de S.Paulo, 09/02/2004

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