A INFLAÇÃO ESTÁ SÓ DE PASSAGEM?

. A inflação – só de passagem? Na edição de Exame de número 778, que chegou aos leitores e leitoras no final de outubro, alguns dias antes do segundo turno da eleição presidencial, Exame colocou na capa o olho do dragão e perguntou “A inflação vai voltar? Nem todos gostaram. Às vésperas de um pleito que se encaminhava para um acontecimento único na história brasileira, perguntaram-se alguns, por que ressuscitar o bicho ou reanimar a coisa? (Curioso como a inflação, feminina, terminou associada ao dragão macho). Bem, passou a eleição, foi um momento histórico, e quatro semanas depois já não se pergunta se a “velha senhora” – feminina de novo – voltará ou não. Ela está entre nós. O IPCA, índice de preços ao consumidor medido pelo IBGE e que é a referência do regime de metas de inflação, encostou nos 10% anuais, a perigosa barreira dos dois dígitos, da qual nos havíamos afastado desde 1996. Os índices da Fundação Getulio Vargas, que captam preços no atacado, já passam dos 20%, no acumulado do ano. A medida não é boa para expressar a inflação real. Tais índices captam, mensalmente, preços industriais de tabela, que não são aqueles efetivamente cobrados. A diferença entre inflação no atacado e no varejo indica justamente que fornecedores e varejo estão, ambos, absorvendo custos e reduzindo margens – como se mostrou claramente na edição 778 de Exame. Mas os índices da FGV indicam qual seria a inflação se os agentes da produção e distribuição pudessem repassar todos seus custos e ainda manter os lucros. Desenham um sinal de alerta, portanto. Um forte amarelo no momento. Já o custo da cesta básica, um conjunto de produtos de alimentação, higiene e limpeza, medido pelo Dieese, captura a inflação real que bate nas costas das famílias mais pobres. Em novembro, esse custo disparou na comparação com outubro, em todas as 16 capitais pesquisadas. A alta ficou entre 8% e 10%, em único mês, em quatro cidades, Rio, Curitiba, São Paulo e Belo Horizonte. Os aumentos foram generalizados, mas com destaque para seis produtos: carne, arroz, pão, açúcar, óleo e farinha. Isso expõe o pior efeito da inflação, a destruição do poder de compra dos mais pobres. Dados do IBGE, elaborados pelos economistas Fernando Montero e Edward Amadeo, da consultoria Tendências, mostram que os rendimentos nominais médios estavam, em setembro último, apenas 2,5% acima da média dos 12 meses anteriores. Mantidos esses parâmetros, notam os mesmos autores, a perda de poder aquisitivo seria enorme, de onde se conclui que o atual nível de preços “não é sustentável”. Outro dado a considerar: o IPCA acumulado neste ano será superior à correção da poupança, também pela primeira vez desde 1995. E quando a inflação bate a poupança, cresce a tentação de gastar em vez de poupar, o que é mais combustível para o dragão. Há ainda outros dois fatores de inquietação. O primeiro é que, além dos dois dígitos no IPCA, este ano será o segundo consecutivo de inflação em alta, cenário que não acontecia desde 1995, quando o Plano Real começava a apagar o fogo do dragão (veja o quadro). A inflação caiu sistematicamente até 1999, quando saltou para quase 9%, em consequência da desvalorização do real, mas foi rapidamente domada no ano seguinte. Já agora, na segunda grande onda de desvalorização, emplacamos dois anos de alta. Mau sinal. O segundo fator de inquietação está nas expectativas, ingrediente essencial no regime de metas de inflação. Se há confiança na capacidade e na disposição do Banco Central em buscar a meta fixada, a expectativa dos agentes econômicos converge para essa meta.  Não é o que vem ocorrendo nas últimas semanas. O teto da meta para o ano que vem é de 6,5%, mas a expectativa de mercado, conforme a última edição do boletim Focus do BC, vai a 10,68%. Também importante: essa previsão é quase igual à expectativa para o IPCA deste ano, 11%. Isso indica que, nas condições atuais, o pessoal não conta com um esforço para derrubar a inflação, mas espera uma política de acomodação. Ora, com dois anos seguidos de inflação acima dos 10% com certeza aumentarão as demandas por indexação salarial, prática preferida da “velha senhora”. Tudo considerado, números e expectativas indicam que ela está de volta. A pergunta agora é outra: ela está de passagem ou vai ficando? Questão que cabe ao governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. O atual governo, pelo BC de Armínio Fraga, acomodou a alta da inflação enquanto entendeu que isso se devia unicamente à disparada das cotações do dólar. Quando achou que a alta de preços era generalizada, então apertou a política monetária, isto é, aumentou a taxa básica de juros de 18% para 22%, em dois lances. Muitos economistas, como Afonso Celso Pastore, acham que o BC agiu tardiamente. E recomendam mais aperto monetário. Outros, como Guido Mantega, assessor do candidato e do presidente eleito Lula, não gostaram da alta dos juros, por entenderem que esta inflação tem a ver exclusivamente com o dólar e a elevação dos preços internacionais das comodities – o que melhorou o saldo das exportações, mas trouxe estragos domésticos. Outro fator alimentador da inflação está nos reajustes dos preços administrados (combustível, energia elétrica, por exemplo), mas estes são indexados aos IGPs, os quais, de sua parte, são inchados justamente pelos preços dolarizados. Considerando isso tudo e, mais ainda, que a renda dos brasileiros está em queda há dois anos, esses economistas, entre os quais se inclui Danny Rapaport, ex-Tendências, hoje diretor do Tática Asset Manegement, acham que o aperto monetário não funciona neste cenário. Para eles, a inflação vai cair no ano que vem com a queda do dólar, já que seria inimaginável uma desvalorização ainda maior do real, e com a estabilização e/ou queda dos preços de comodities. Mas qualquer que seja a linha adotada, um ingrediente é essencial: a confiança na capacidade de ação do BC de Lula. Essa confiança tem que ser construída, pois os quadros ligados ao PT, tanto economistas quanto políticos, sempre foram críticos não propriamente da política de juros altos, mas do que consideravam excessivo peso conferido à estabilidade, em detrimento do crescimento. Por isso, sempre foram associados a uma linha mais tolerante com a inflação. Só que a tolerância muda de sentido quando a inflação vai de 7% para mais de 10%, com expectativa de alta. Ou seja, não apenas o BC mas todo o governo Lula precisará demonstrar empenho na redução da inflação. Nesse sentido, têm sido positivas as declarações do coordenador da transição e mais do que provável nome forte da área econômica, Antonio Palocci, segundo as quais o controle da inflação será a "prioridade das prioridades" e que isso será feito sem "invencionices e heterodoxias”, como é o congelamento de preços. A boa intenção precisa ser concretizada com a indicação da equipe econômica, incluída a diretoria do BC, e com os primeiros passos dessa equipe. Se o atual BC fizer o favor de elevar os juros mais uma vez na reunião de 18 de dezembro, a próxima diretoria ficaria dispensada de fazer isso logo de cara. Mas seria cobrada, já agora, para se manifestar sobre o aperto monetário. Se apoiar com ênfase, agrada ao mercado, mas não a muita gente do PT e de fora do partido, como os empresários, tenham ou não apoiado Lula. Se ficar no muro, evita briga com o entorno do governo a que pertencerá, mas não ganha confiança do mercado. Ou seja, as divergências em relação à inflação atual se repetem na escolha das alternativas tanto para seu combate quanto para a busca de confiança no BC. Os favoráveis ao aperto monetário entendem que só isso atua nos dois objetivos. Acham ainda que como o PT tem fama de tolerante com a inflação, o aperto monetário que se exige de seu governo tem que ser maior. Do outro lado, para os que consideram ineficiente mais aperto monetário, o ganho de confiança do governo Lula se fará pela administração fiscal responsável, com a manutenção ou elevação do superávit primário, e pela agenda de reformas, especialmente a da Previdência. No mundo real, provavelmente será necessária uma combinação de todas essas alternativas. Publicado na revista Exame, edição 781, data de capa 11/12/2002

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