A GLOBALIZAÇÃO E OS POBRES

. A globalização pára. Na vez dos pobres A globalização faz água neste momento, tanto na política quanto na economia. Na política, o fator de desestabilização é o caso Iraque, que está provocando uma profunda divisão entre os países. Na economia, as negociações em torno da abertura e da liberdade de comércio ameaçam emperrar em diversos fóruns. Nos dois casos, o Brasil sai perdendo. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso batalhou pelo mundo afora a tese da “globalização assimétrica”, cuja tradução simples é a seguinte: quase todos vão para a frente, mas os países desenvolvidos caminham mais depressa, de modo que o resultado é um aumento da desigualdade. Os pobres ficam menos pobres, mas os ricos tornam-se mais ricos ainda. A saída é mais globalização para os menos desenvolvidos – e isto quer dizer duas coisas: primeira, abrir os mercados dos países desenvolvidos naqueles setores em que as nações emergentes e pobres são mais competitivas; segunda, assegurar para estas fluxos regulares de capital e financiamento. Com tintas diferentes, o presidente Luís Inácio Lula da Silva tem defendido a mesma idéia nas suas viagens ao exterior. Foi o que disse, por exemplo, no Fórum Econômico Mundial, em Davos: o Brasil quer mais e não menos abertura no comércio mundial. Na prática, o processo está mal parado. O caso Iraque, sem fazer juízo de valor sobre quem está certo ou errado, cria divisão e conflito entre os países, além de enfraquecer a Organização das Nações Unidas. Ora, a globalização, hoje, precisa exatamente do contrário, de um ambiente de entendimento. Abertura dos mercados, regulação dos fluxos de mercadoria e de capitais, isso só pode ser obtido por meio de amplas negociações internacionais, o que exige o bom funcionamento de instituições como a ONU (e suas agências) e a Organização Mundial do Comércio (OMC). A autoridade da ONU está em cheque no caso do Iraque. A eficácia da OMC está em cheque dadas as dificuldades no andamento da Rodada de Doha – nome que se deu ao processo de negociação iniciado em novembro de 2001 na cidade de Doha, no Catar. No seu lançamento, foi chamada também de Rodada do Desenvolvimento, por incluir temas que interessam diretamente aos países emergentes (ou em desenvolvimento), tais como a abertura dos mercados dos países ricos para os produtos têxteis e agrícolas. Dizia-se então que desta vez a globalização se tornaria mais simétrica. No último fim de semana, ministros de 25 países, Brasil incluído, participaram de uma minicúpula em Tóquio, com o objetivo de destravar a Rodada de Doha que, pelas regras definidas, deve ser concluída até 1o. de janeiro de 2005. O principal obstáculo está identificado: a França, que pretende jogar para as calendas a abertura do mercado agrícola. Ou seja, pretende manter a escandalosa proteção e os escandalosos subsídios que oferece a seus produtores agrícolas, não apenas impedindo o acesso de terceiros países ao mercado francês, como propiciando competição desleal no mercado internacional. Ocorre que a França não fala apenas por ela. É a inspiradora e a principal beneficiária da Política Agrícola da União Européia – a qual, por isso, já foi obrigada a recuar de propostas de abertura, ainda que tímidas, que havia feito no andamento da Rodada de Doha. Os Estados Unidos – que também protegem e subsidiam seus agricultores – apresentaram propostas de abertura e de eliminação desses benefícios, mas no quadro da OMC. As decisões na OMC são tomadas por consenso dos seus 160 países membros. Havendo alguma divergência importante, o processo pára. E a União Européia representa uma divergência significativa. O Japão, que também protege e subsidia seus agricultores, trata de falar o menos possível, esperando que a França, via União Européia, bloqueie a abertura. Como os EUA sustentam que só podem derrubar sua proteção agrícola se as outras nações desenvolvidas o fizerem, o processo está perto do impasse. Mais uma ironia da história. A bandeira antiglobalização foi levantada pelas esquerdas mundo afora. E se vencer neste momento, ou seja, se a Rodada de Doha fracassar, será em benefício das classes mais conservadoras – os agricultores – e dos países mais ricos. O prejuízo maior ficar para os países exportadores de produtos agrícolas e têxteis. O Brasil perde nas duas categorias. E perde muito. O que coloca um desafio complexo para a nossa política externa. É preciso reagir às manobras dos países desenvolvidos quando estes tentam limitar a abertura aos itens que lhes interessam. Mas essa reação não pode dar argumentos que levem ao rompimento das negociações nem ao isolamento do país, pois o resultado disso seria simplesmente manter fechados mercados dos quais os produtores brasileiros mais precisam. Tome-se o caso das negociações para a criação da Associação de Livre Comércio das Américas (Alca) que, por sinal, correm ao lado da Rodada de Doha, ambas com a mesma data de encerramento. A primeira proposta do governo americano para a Alca, apresentada na semana passada, exclui diversos pontos que interessam ao Brasil. Alguns analistas acham mesmo que o objetivo dos EUA é colocar o Brasil no córner. Sendo assim, o que fazer? Se o país permanecer isolado, enquanto os demais países se entendem com os EUA, é prejuízo certo. Cerca de 25% das exportações brasileiras vão para os EUA. Outro tanto, na verdade um pouco mais, vai para os demais países das Américas. Ou seja, o risco é o Brasil ficar de fora num acordo que envolve países que são o destino de mais de 50% das nossas exportações. Esse seria o pior desfecho para o Brasil. Não é simples evitá-lo, não se trata propriamente de um “fair play”, mas é a tarefa da política externa brasileira: reclamar, brigar, mas fazer todo o possível para evitar a ruptura das negociações. É preciso evitar a situação em que o país tenha de optar entre um acordo ruim ou acordo nenhum. Talvez as circunstâncias nos empurrem para a busca do acordo menos ruim possível. De todo modo, fica a conclusão. Precisamos de mais globalização. Quem não a quer hoje são os setores mais atrasados dos países mais ricos. Publicado em O Estado de S.Paulo, 17 de fevereiro de 2003

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