. A fé não muda, engana A semana passada foi para jornalista nenhum botar defeito. Sobraram notícias importantes, da votação da reforma da Previdência no Senado aos números, decepcionantes, de emprego, renda e atividade econômica no Brasil. Mas a Bolsa seguiu em frente e bateu o recorde histórico dos 20 mil pontos, por conta do crescimento futuro. Na área internacional, outro recorde econômico, a espetacular expansão do Produto Interno Bruto americano, que é boa notícia para o mundo todo. Ainda assim, arrisco dizer que o acontecimento da semana foi a mancada do líder do PT no Senado, Tião Viana, que atribuiu aos “apenas dez meses” do governo Lula um êxito penosa e parcialmente construído ao longo de anos pelo governo FHC. O êxito é a forte redução do número de subnutridos no Brasil, de 18,6 milhões, em 1992, para 15,6 milhões em 2001, conforme relatório divulgado pela FAO, o órgão das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura. Fernando Henrique Cardoso governou de 1o. de janeiro de 94 a 31 de dezembro de 2002, cobrindo portanto a maior parte do período em que se conseguiu aquela redução sem dúvida expressiva. Como a população nacional cresceu nesse período, mais 25 milhões de pessoas, a queda do número de subnutridos é ainda mais relevante em termos proporcionais. A notícia saiu nos jornais de quarta-feira. A mancada do senador Tião Viana deu-se na quinta, quando ele, da tribuna, contestava a bateria de críticas da senadora Heloisa Helena. Para mostrar que o governo Lula seguia fiel a seus princípios e sabia fazer as coisas, anunciou a redução da fome em apenas dez meses de administração petista. É claro que o senador não hava lido a notícia inteira. Talvez tivesse batido os olhos nos títulos ou talvez algum assessor apressado tenha dado a dica azarada. Paciência, acontece. O senador estava empenhado nas negociações para votar a reforma da Previdência – e isso dá um trabalho danado. Ainda assim, é interessante notar: como é que Tião Viana nem sequer desconfiou? Um segundo de reflexão mostraria que: 1) nem um programa social que fosse um prodígio de eficiência e tivesse um caminhão de dinheiro poderia eliminar a fome de tantos milhões de pessoas em dez meses; 2) o Fome Zero não é uma coisa, nem tem a outra; 3) mesmo que tivesse conseguido tal milagre, não seria possível medir os resultados em tão curto espaço de tempo. Ou seja, a conclusão de que o atual governo pudesse ter obtido um sucesso tão instantâneo não resiste ao menor raciocínio. Só uma fé inabalável poderia levar a tal conclusão – e tal equívoco. Fé no PT, em Lula, na vontade política, a crença infinita de que este governo divide a história brasileira entre o tempo dos traidores da pátria e tempo dos justos e bons. Não é exagero. Outro dia, os jornais registraram o comentário de um líder petista que discutia se o governo Lula será “apenas um bom governo” ou uma efetiva mudança histórica. O comentário foi registrado “em off”- jargão dos jornalistas para indicar que o nome do autor não será dado, a seu pedido. E por que? Talvez porque o autor não quisesse melindrar os colegas ao levantar a hipótese de que seu governo pode ser “apenas bom”. É isso. Os petistas, a começar do próprio presidente Lula, se ofendem com críticas e se irritam profundamente quando se diz que seu governo é igual a outros nisto e naquilo. Na verdade, é igual em muitas coisas, melhor em algumas, pior em outras, mas eles não admitem. Reparem a quantidade de vezes que Lula e seu pessoal dizem “pela primeira vez . . .” Às vezes, parece coisa do Duda Mendonça – escolher uma tese, uma frase e martelar na mídia. Mas não é, ou não é apenas isso. O pessoal acredita mesmo que está fazendo uma nova história. Tanto acredita que Tião Viana não vacilou: estão vendo? Tiramos 3 milhões da fome em apenas dez meses! Crenças à parte, não foram dez meses, foram dez anos, dos quais sete no governo FHC, que pode, assim, reivindicar a maior parte do mérito. Há aí duas ações específicas: o Plano Real, com a eliminação da inflação, que dá um ganho de renda imediato para os mais pobres; 2) os programas de transferência de renda (tipo Bolsa-Escola) e os programas sociais que, entre outros resultados importantes, colocaram mais crianças nas escolas, reduziram a mortalidade infantil e aumentaram a esperança de vida. A outra grande causa da redução da fome, a principal, é a modernização da agropecuária brasileira, conforme notou Rolf Kuntz (Estado, quinta, 27/11). Essa modernização acelerou-se nos anos 80, muito antes de FHC e Lula, prosseguiu nos anos 90, e talvez se possa dizer que foi um triunfo da iniciativa privada a despeito dos governos. Foi o que permitiu a maior produção e o barateamento de alimentos. De todo modo, todos os indicadores sociais melhoraram no período FHC – isso medido por organismos internacionais – e que resultaram na melhora do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) em todos os anos. Repetindo: não são números secretos, mas registrados e avaliados por insuspeitos institutos no Brasil e no exterior. E entretanto, os petistas não enxergam isso. Sequer cogitam, tanto que a ficha, óbvia, não caiu para o senador Tião Viana. Não lhe passou pela cabeça que a “herança maldita” pudesse incluir resultado tão vistoso. É melhor ter no governo homens de boa fé do que um bando de espertalhões. Mas homens de fé cega – isso é problema. Exemplo: foi por pura fé e nenhum exame dos números que o governo Lula resolveu inventar o Fome Zero, achando que estava criando o verdadeiro programa social. Perdeu tempo, dinheiro e energia nisso, até que abriu os olhos e fez o racional, o programa Bolsa Família, que simplesmente reúne todos os programas criados na era FHC e trata de aperfeiçoá-los e colocar lá mais dinheiro. É positivo que se tenha operado a mudança, mas a confusão inicial pode ter causado prejuízos, na forma de atrasos na distribuição das bolsas. Não será surpresa se houver alguma piora dos indicadores sociais neste ano. Também há um desmonte no Ministério da Educação – e os números mostram que houve êxitos evidentes no período do ministro Paulo Renato, como o aumento expressivo de número de crianças na escola, a entrega dos livros didáticos e a redução muito forte do analfabetismo (de 14,8% da população de mais de 10 anos em 1995, para 10,9% em em 2002). Também não será surpresa se houver dados negativos nesta área. De outro lado, grande parte do PT despreza o modelo agropecuário, considerado concentrador e excludente. É verdade que Lula colocou na Agricultura um legítimo representante do moderno agribusiness, Roberto Rodrigues, mas ele está a todo momento sendo atacado e atrapalhado por setores diversos do PT. Ou seja, o governo Lula não corre o risco de ser “apenas um bom governo”, como acreditam os fiéis, mas pode, sim, ser um mau governo em vários quesitos. E será mesmo uma ironia se o governo Lula, eleito em nome do social, contra o neoliberalismo, acabar por apresentar resultados melhores que FHC justamente na seara dita neoliberal (a reforma da Previdência mais ampla, as metas de inflação mais apertadas, o superávit primário maior) e piores no campo social. Para o pessoal perceber que a fé não muda a história, nem para frente, nem para trás. Publicado em O Estado de S.Paulo, 01 de dezembro de 2003
A FÉ CEGA DO GOVERNO LULA
- Post published:9 de abril de 2007
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