A DÍVIDA E O RISCO BRASIL (1)

. Estamos tão mal assim? Até a primeira semana de abril último, há apenas dois meses, o mercado financeiro exibia indicadores de um país com suas contas em ordem e em processo de recuperação. O índice da Bolsa de Valores de São Paulo operava pouco abaixo dos 14.500 mil pontos, nível próximo ao verificado no primeiro quadrimestre do ano passado, quando o país passava por um período de crescimento expressivo. O risco Brasil, medido pelo C Bond, o mais negociado título da dívida externa brasileira, estava em torno dos 700 pontos. Assim, pagava juros anuais de apenas 7 pontos porcentuais acima da remuneração de um título do Tesouro americano, também um nível parecido com o verificado nos bons momentos de 2000e início de 2001. O dólar, outro indicador sensível, se vendia na faixa dos R$ 2,30 em março último, tendo caído abaixo disso nos primeiros dias de abril. Durou pouco. Na segunda semana de abril, todos esses indicadores começaram a piorar, aceleradamente. Já em maio, a Bovespa havia perdido mais de dois mil pontos para chegar, em junho, abaixo dos 12 mil. O risco Brasil encostou nos mil pontos em maio, passou dos 1.200 no começo de junho, chegou a bater 1.313, o que o deixava atrás apenas de Nigéria e Argentina. O dólar subiu a R$ 2,50 em maio e alcançou a casa dos R$ 2,70 em junho. O que teria acontecido de tão ruim na base da economia brasileira para que o mercado virasse de cabeça para baixo, com a escalada paralela dos juros, e tudo isso em escassos dois meses? Nada, tal é a resposta, tão surpreendente quanto inequívoca. Alguns quesitos importantes até melhoraram, como a inflação ao consumidor, em alta de março para abril e agora em baixa. Outros pioraram, é verdade, como as vendas menores no comércio e na indústria, mas nada que sugerisse uma recessão. Uma coisa pela outra, a economia brasileira, nos fundamentos, manteve a mesma marcha que se não é triunfal também não é o caminho do inferno. As contas públicas, internas e externas, e o tamanho da dívida do governo mantêm hoje a mesma estrutura de nove semanas atrás e, mais, estão em melhor estado do que há três anos. São mais manejáveis e não há risco visível de calote. Portanto, temos aí duas perguntas. Primeira, qual a origem de tal mudança no ambiente? Segunda, por que teria ocorrido neste momento? A deterioração dos indicadores coincide perfeitamente com a forte ascensão do candidato do Partido dos Trabalhadores, Luís Inácio Lula da Silva, nas pesquisas para as eleições presidenciais. Ele assumiu a ponta em abril e ultrapassou a marca dos 40% – nível que, em algumas simulações, pode sugerir uma vitória ainda no primeiro turno. Para isso, o candidato precisa ter 50% mais um dos votos válidos (descontados nulos e brancos), nível do qual Lula se aproximou. Além disso, nas simulações de segundo turno, Lula passou a bater com folga o candidato governista, o senador Serra, do PSDB, invertendo os números de março. Eis aí, o mercado, que olha ora para seu próprio umbigo, ora para a frente, deixou de prestar atenção nos indicadores do governo FHC e passou a especular sobre como seria um eventual governo Lula. E, obviamente, não gostou do que viu ou imaginou ver. Portanto, foi uma mudança de expectativas. E, sabemos, na economia, como na vida, a realidade começa a mudar quando se alteram as expectativas. Assim como consumidor ressabiado não vai ao shopping, investidor desconfiado compra dólares, não compra ações nem financia o governo ou cobra prêmios maiores para isso. E lá se vão os indicadores que logo, de sua vez, afetam a economia real. Juros altos travam os negócios e o consumo, o governo aumenta suas despesas financeiras, o dólar muito caro ameaça a inflação futura. Sobre esse cenário básico, formado pela expectativa eleitoral, colocou-se um outro complicador no começo de junho – a decisão do Banco Central de antecipar a exigência para que bancos e fundos registrassem os títulos públicos de suas carteiras pelo valor de mercado. Houve um consenso no aspecto técnico, isto é, no entendimento de que a “marcação a mercado”, como se diz, é melhor e mais justa para o funcionamento do sistema. Não houve consenso quanto ao momento. No caso, a regra impos uma desvalorização dos papéis, especialmente das Letras Financeiras do Tesouro, as LFTs. O prejuízo levou a movimentos defensivos de venda desses títulos, acelerando sua desvalorização e a consequente alta dos juros. Assim, quando o mercado, por razões eleitorais, começava a torcer o nariz para os títulos da dívida brasileira, o BC deu-lhe mais uma razão para desconforto. Seguiram-se daí os habituais equívocos de interpretação. Quando os bancos e investidores brasileiros passaram a reclamar do BC a troca de títulos longos por curtos, porque estes, com a regra da marcação do valor de mercado, reduzem a volatilidade e os prejuízos das carteiras, analistas internacionais entenderam que os nacionais estavam rejeitando a dívida pública. Sentiram cheiro de calote e venderam títulos da dívida externa brasileira – curiosamente aqueles sobre os quais o risco de default é praticamente nulo. Armada a confusão, o BC juntou seus instrumentos e foi ao mercado. Ofereceu aos investidores os títulos de curto prazo, que fogem tanto do risco eleitoral quanto dos problemas da marcação de mercado, e operou no câmbio, abastecido com os US$ 10 bilhões adicionais que está sacando do Fundo Monetário Internacional. Também anunciou a recompra de títulos da dívida externa, que ficaram baratos e, pois, um bom um negócio para quem acredita que não haverá default. E não é apenas o BC. O chefe do setor de análise da economia brasileira do JP Morgan, Graham Stock, disse a Exame que o banco está recomenando a seus clientes a compra de dívida brasileira. Mas a ação do BC pode apenas amenizar o nervosismo mais recente. Se o pano de fundo é o “risco intrínseco Lula”, conforme citado em estudo recente de Affonse Celso Pastore, o cenário de base só muda numa destas duas saídas: ou o mercado se convence de que Serra, cujo compromisso com a solvência do setor público é indiscutível, vai ganhar a eleição; ou se convence de que o governo Lula será fiscalmente responsável na intenção e na prática. Mas há uma outra questão que está por trás de todas as demais. Como é que o ambiente econômico brasileiro pode mudar tanto em tão pouco tempo? Todos os países emergentes sofrem com essas mudanças, mas no caso do Brasil elas são mais intensas e mais rápidas. A explicação para isso é que o país está no meio do caminho. Há uma política econômica de compromisso com a solvência do Estado em vigor desde o final de 1998 – quando o governo começou a produzir superávits primários – e complementada no início de 1999, depois da desvalorização do real, com o regime de metas de inflação e câmbio flutuante. Reformas do setor público, especialmente previdenciária e administrativa, fazem parte dessa política. Já produziu avanços importantes que, por exemplo, diferenciam enormemente o Brasil da Argentina, e fazem com que o colapso das contas públicas seja uma possibilidade remota. Ao mesmo tempo, porém, estando no meio do caminho, o equilíbrio é delicado e pode se romper se duas ou três variáveis chaves forem mal administradas. Não há hipótese de uma ruptura abrupta, mas de uma longa deterioração. Mas como o mercado age por antecipação, as expectativas podem piorar antes. (segue no texto seguinte, com o mesmo título) Publicado na revista Exame, edição número 769, data de capa 26/06/02

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