VÍCIOS E VIRTUDES

. — Brasil vai bem porque fez coisas certas … e erradas —

O Brasil quebrou nas crises internacionais anteriores. O roteiro era o seguinte: fuga de capitais, redução brutal dos financiamentos externos, desvalorização do real, choque de inflação, e forte elevação da dívida externa quando medida em reais. Resultava daí a dupla resposta do governo: alta dos juros para combater a inflação e, sobretudo, para impedir mais saída de capitais e corte de gastos públicos de modo a sobrar mais dinheiro para o governo comprar os dólares com os quais saldaria os compromissos externos. Alta de juros e corte de gastos terminavam em recessão.
Desta vez, houve forte restrição dos financiamentos externos, saída de dólares e a conseqüente desvalorização do real. Mas não houve inflação e a dívida pública caiu, de modo que o governo pode reduzir juros e até aumentar seus gastos.
Entre um momento e outro, a principal diferença está nas contas externas. Com a bonança global dos últimos anos, o Brasil acelerou suas exportações, que geraram substanciais superávits comerciais. Com a sobra de dólares, o Banco Central iniciou uma forte política de compra de divisas. Quando a crise estourou, o BC tinha reservas de US$ 207 bilhões, número superior ao total da dívida externa pública e privada de médio e longo prazo.
E mais: a dívida externa pública estava reduzida a US$ 90 bilhões, de modo que o governo, pela primeira vez, era simplesmente credor em dólares. Assim, com a desvalorização do real (e a conseqüente valorização do dólar), o governo agora ganha dinheiro. Ou seja, a dívida pública, medida em reais, diminui em vez de aumentar. E isso dispensa a política de cortar gastos. Ao contrário, libera gastos.
De outro lado, a desvalorização do real não provocou inflação porque houve uma forte queda de preços internacionais. Assim, o dólar ficou mais caro, mas o produto lá fora ficou mais barato em dólar, uma coisa compensando a outra.
Finalmente, os muitos anos seguidos de aplicação da política econômica clássica (metas de inflação, superávit primário, redução do endividamento e câmbio flutuante, com mais abertura externa) consolidaram seus efeitos. Na entrada da crise, o Brasil já era grau de investimento.
Tudo considerado, o Brasil colheu as virtudes da ortodoxia e da globalização. Em vez de quebrar (e cair nas mãos do FMI), apenas desacelera, num ciclo normal.
Fora isso, o Brasil se beneficia de seus vícios. É isso mesmo. A crise é do comércio externo e do crédito ? e o Brasil tem pouco comércio e menos crédito.
Coréia do Sul e México, por exemplo, estão apanhando mais. A economia coreana exporta o equivalente a 50% do seu Produto Interno Bruto. No México, a exportação passa um pouco dos 40% do PIB.
No Brasil? As vendas externas (US$ 198 bilhões no ano passado) equivalem a 13% do PIB. Portanto, a queda nas exportações, que já ocorre, afeta menos a atividade econômica local.
Mas o lado mais evidente dessa ?vantagem? dos vícios está no departamento do crédito. No ano passado, o crédito total no Brasil chegou a 41% do PIB. Na Coréia, o crédito doméstico equivale a 110% do PIB. Portanto, investimentos e consumo dependem muito mais do fluxo de empréstimos do que no Brasil. Logo, se o crédito seca, o problema é maior lá.
Outras comparações: no grande ano de 2007, quanto o mundo todo cresceu espetacularmente, o crédito concedido nos EUA para a compra de casa própria chegou a 86% do PIB. Para a aquisição de carros, 9,2%.
Na Coréia do Sul, o crédito imobiliário representava 53% do PIB. Para automóveis, 17%. E no Brasil? O ano passado foi considerado um dos melhores para o setor imobiliário. Só pelo Sistema Financeiro de Habitação – empréstimos com base nos recursos da caderneta de poupança – foram financiadas quase 300 mil casas, no valor total de R$ 30 bilhões. Isso dá a ridícula relação de 1% do PIB. Se consideradas outras modalidades de financiamento, incluindo as casas populares, subsidiadas, o total financiado não chega a 3% do PIB.
Logo, a falta de crédito abala pouco. E continua sendo um defeito.
Também dizem que nosso sistema bancário é mais sólido. Mas claro que é sólido: não empresta e quando empresta cobra esses juros!

Publicado em O Globo, 26 de março de 2009

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