GETÚLIO E LULA

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Ondas passadas Uma das mais fortes lembranças de minha infância é o dia da morte de Getúlio. A notícia chegou na sala do segundo ano do Grupo Escolar Cardoso de Almeida, em Botucatu. E foi boa: a aula acabava ali e teríamos feriado por vários dias. Alguns perceberam a preocupação da professora, outros não, mas todos saíram comemorando e combinando coisas para as férias inesperadas. Quando cheguei em casa, meu pai, funcionário do Banco do Brasil, já estava lá, tenso, nervoso, tentando telefonar para São Paulo. A história começava a mudar. O avô paterno, também funcionário do BB, era getulista e morava em São Paulo. A família de minha mãe fazia política pelo PSD e, portanto, também estava com Getúlio. Não era propriamente getulista – viria a ser, isso sim, juscelinista – mas não gostava nada do pessoal da UDN. E assim a crise entrava em casa. Não era mais só um feriadão, mas algo que inquietava meus pais, tios e avós, todos preocupados com “os acontecimentos”. Eu e meus primos não sabíamos bem o que se passava, mas entendíamos que não era nada bom e poderia ficar pior. Afinal, não aconteceu nada com ninguém da família e essa memória política, digamos assim, desaparece, para só voltar no dia da eleição de JK. A lembrança aí é só boa. Um dia de festa. Toda a família participou da mobilização. Eu, por exemplo, ficava numa banquinha, perto da zona eleitoral, “fazendo” os votos para deputado. Não havia cédula única. O eleitor deveria colocar em um envelope as cédulas individuais com o nome do deputado federal e do estadual. Em tese, essas cédulas deveriam ser fornecidas pela Justiça Eleitoral. Na prática, os candidatos a providenciavam. E a gente preparava os envelopes com as cédulas dos candidatos apoiados pela família. De tempos em tempos, chegavam grupos de eleitores trazidos pelo “nosso pessoal”. Entravam em fila e a gente entregava os envelopes. A família, lembro-me bem, tinha certeza da vitória de JK. Ele, o próprio, havia passado por Botucatu, tendo circulado pela região no carro de um tio – “o carro do chefe”, como ficou conhecido até se desfazer. E daí? – perguntarão a leitora e o leitor. E daí que essas histórias voltaram à mente, sugeridas pelo abundante material divulgado pela imprensa neste mês dos 50 anos da morte de Getúlio. O ponto a destacar é o seguinte: como muda a imagem de Getúlio. Mudou ao longo das histórias pessoais, por exemplo. A gente começou admirando o presidente que conduziu a modernização do país, com o nacional-desenvolvimentismo. Depois, nos horrorizamos com o ditador cuja polícia prendeu, torturou, perseguiu e mandou pessoas para a morte. (E se me permitem mais uma observação pessoal, reconfortante, nossa família gostou mesmo é do democrata JK). Em agosto de 2004, todas as imagens de Getúlio apareceram de novo. E sempre vinculadas aos debates do momento. Muita gente, por exemplo, comparou o “Brasil que crescia” dos tempos de Getúlio com o “Brasil estagnado” dos anos FHC. Seria a prova da superioridade do nacional-desenvolvimentismo sobre o neoliberalismo, que teria desmontado as bases da origem getulista. Bobagem. Vamos falar francamente: as grandes estatais, base do nacional-desenvolvimentismo, estavam literalmente quebradas há algum tempo. O governo FHC apenas reconheceu isso e iniciou o serviço de saneamento. Isso se fez com privatização – entendendo-se, por exemplo, que produzir aço ou fazer uma ligação telefônica não é função do Estado – ou com mais gasto de dinheiro público – como os aportes destinados aos grandes bancos federais e à própria Petrobrás. Getúlio ora é apresentado como o visionário que anteviu e comandou a industrialização e a urbanização do país. Ou apenas como o governante que soube surfar nas ondas de seu tempo. Mas o Brasil não foi diferente de muitos outros países. A industrialização acelerada, apoiada em investimentos públicos em setores de base, foi uma experiência repetida pelo mundo todo. Será que isso não aconteceria de qualquer modo no Brasil, uma simples sequência histórica? A comparação, de todo modo, sugere que a melhor interpretação para Getúlio é a do governante que seguiu a onda. O que também serviria para explicar as constantes idas e vindas em toda a sua atividade política. Num momento, por exemplo, ele apóia políticas de estabilização e de combate à inflação. Depois, dá 100% para o salário mínimo. Num momento, constitui comissões e grupos de trabalho para negociar a captação de investimentos externos. Depois, faz um emocionado discurso esculhambando a remessa de lucros. Num momento, ditador. No outro, democrata. E assim seguia. Um ponto, entretanto, parece indiscutível. Se em algum momento foi correto, o modelo de industrialização via substituição de importações, deveria ter tido vida muito curta. Olhando em retrospectiva, como notou recentemente o economista Paul Krugman, esse modelo, largamente praticado a partir dos anos 30, não produziu um só caso de sucesso, entendendo-se sucesso pela promoção do país à condição de desenvolvido. Finalmente, se o segredo é surfar na onda, as ondas passadas não movem países. Publicado em O Estato de S.Paulo, 39/08/2004

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