GOVERNO LULA MONTA SUA POLÍTICA EM PLENO VÔO

. La nave va A difícil travessia da oposição para o governo O artigo 192 da Constituição votada em 1988 é uma composição de coisas óbvias, outras inúteis e uma estupidez monumental. Entre as óbvias: que o sistema financeiro nacional será regulado por lei complementar que disporá sobre “a autorização para o funcionamento de instituições financeiras”. Portanto, atenção legislador, não podem ser instituições recreativas. Outra: que a participação do capital estrangeiro será regulada tendo em vista o interesse nacional e os acordos internacionais. Poderia ser contra uma coisa e outra? E ainda assim: quem define e qual é o interesse nacional? E por aí vai até que no último item, o terceiro parágrafo, vem a bobagem mundial: “as taxas reais de juros, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão do crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima desse limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar”. Quanto seria a taxa real de juros hoje no Brasil? Se considerada a taxa básica de juros fixada pelo Banco Central, 26,5% ao ano, deflacionada pelo IGP-M, acima dos 30% nos últimos doze meses, dá um valor negativo. Se considerada a taxa do cheque especial, deflacionada por qualquer índice de preços, vai passar muitas vezes daqueles 12 por cento. São as distorções da economia brasileira, consequências de fatores tão variados como a inflação, o déficit público elevado, que obriga o governo a entrar na praça para tomar emprestada a poupança privada, ou a dificuldade de se cobrar dívidas, que eleva o risco de concessão de crédito. A resposta a isso inclui desde as reformas destinadas a reduzir o gasto público até mudanças microeconômicas, para facilitar a cobrança em todos os níveis de negócios. Agora, imaginem a sequência da insensatez: surge a idéia de que todo esse problema pode ser resolvido com um parágrafo na Constituição; o parágrafo é aprovado na Constituinte, apesar da presença de tão ilustres parlamentares, tornando o Brasil um caso único de gozação internacional; o tabelamento não é aplicado, por absoluta impossibilidade, e acaba na triste vala das leis que não pegaram; e 15 anos depois desse vexame, agora em abril de 2003, o governo do PT encontra dificuldades, na Câmara dos Deputados, para limpar o já famoso artigo 192 da Constituição. Reparem que o Senado aprovou há dois anos o Projeto de Emenda Constitucional número 53, de autoria do então senador José Serra, com redação posterior dos senadores José Eduardo Dutra (PT, hoje presidente da Petrobrás) e Jeferson Peres, do PDT, que é simples e absolutamente neutro. Estabelece que o sistema financeiro nacional será regulamentado por leis complementares. E ponto final. Assim, o parlamentar que quiser propor projeto de lei complementar introduzindo os juros reais de 12 por cento ao ano, poderá fazê-lo. Assim como o governo poderá apresentar projeto de lei sobre a autonomia do Banco Central. Ou seja, a reforma do artigo 192 não introduz nenhuma mudança no sistema financeiro nacional. Apenas abre a possibilidade de regulamentação com diversas leis, assunto por assunto. Resumo geral, só a miopia ideológica e a ignorância econômica podem ter levado parte da bancada governista, na Câmara, a fazer um cavalo de batalha em torno dessa questão. Outra explicação está no processo político ora em curso e que foi especialmente bem definido pelo deputado Heráclito Fortes (PFL-PI): “Nós não sabemos ser oposição e o PT não sabe governar”. É mais fácil, porém, aprender a fazer oposição. Na direção inversa é mais complicado. Tome-se este exemplo, que parece um detalhe sem importância, mas quer dizer alguma coisa. No final de março, foi ao ar por rádio e tevê o programa do PCdoB, com o habitual ataque aos juros altos e à Alca (a Associação de Livre Comércio das Américas). Ocorre que o PCdoB integra a base de sustentação do presidente Luís Inácio Lula da Silva e forneceu o líder do governo na Câmara dos Deputados, Aldo Rebelo (SP), um dos mais destacados membros do partido. Ora, não foi esse mesmo governo que já aumentou os juros duas vezes e está negociando a Alca? Eis aí, o que o líder do PT na Câmara, deputado Nelson Pellegrino, disse de seu partido – que ainda não pegou o jeito de ser governo – vale também para os aliados. Não é fácil essa travessia, sobretudo quando a organização, como é o caso do PT, ficou cerca de 20 anos sem uma perspectiva concreta de ganhar a eleição nacional. Toda oposição é, por definição, irresponsável: critica e propõe políticas que não precisará implementar de imediato. Vai daí que quanto mais distante do poder, ou da possibilidade de assumi-lo, mais irresponsável se torna essa oposição. Tome-se o PFL que cogita propor um salário mínimo de R$ 300,00, sem preocupar-se com a circunstância de que isso é totalmente contraditório com a posição favorável à reforma da Previdência. O PT governou cidades e estados, é verdade, mas não é a mesma coisa. Quando se toma conta do país, os assuntos são mais graves. É preciso fazer acordo com o FMI, decidir dar ou não dinheiro aos estados e prefeituras, definir as diversas taxas de juros (sem tabelamento!), administrar o Banco Central e o sistema financeiro (com ou sem o 192), selecionar quem vai receber os enormes financiamentos do BNDES, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, formatar a reforma tributária e da Previdência, tomar posição sobre a guerra do Iraque, mas de olho menos na ideologia e mais nos interesses do país no cenário internacional. O próprio presidente Luis Inácio Lula da Silva tropeça aqui e ali. Ora é uma declaração mais agressiva sobre a guerra, logo corrigida pelo profissional Itamaraty. Ora uma declaração mais de sindicalista do ABC, quando pediu que a Volks montasse na fábrica de São Bernardo seu novo carro mundial, criando assim uma saia justa com os operários de São José dos Pinhais, no Paraná, também candidatos ao empreendimento. Ainda assim, a coisa vai. Em março, a Bovespa se valorizou, o dólar caiu, os títulos brasileiros no exterior subiram, o risco Brasil se reduziu, os financiamentos externos se elevaram. É porque tem gente governando na área econômica, de longe a que fez a travessia mais completa. Mas também o pessoal que articula as reformas segue em frente. O Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social está concluindo as propostas de reforma tributária, com alguns consensos importantes, como a necessidade de unificação da legislação do ICMS, mas sem ter conseguido definir-se pela questão crucial da cobrança do imposto na origem (onde é produzido o bem ou serviço) ou no destino (onde é consumido). Sendo o Conselho um órgão de aconselhamento do presidente, caberá a este decidir. E é essencial que o faça. A proposta do governo precisa ir fechada ao Congresso, claro que deixando abertos pontos de negociação, mas definindo um rumo. É exatamente isso que falta hoje, incluindo o caso da reforma da Previdência. Está claro que a grande possibilidade de aprovação rápida das reformas reside no imenso capital político do presidente Lula. Ou seja, a proposta mais viável será a proposta Lula. Enquanto esta não é definida – e nesse clima de travessia oposição/governo – sobram palpites. Um diz que a CPMF pode ir a 0,5% e tornar-se permanente. O ministro da Fazenda, Antonio Palocci, fuzila a idéia. O presidente do PT, José Genoíno, diz que o projeto de autonomia do Banco Central não é para já. O Banco Central diz que está, sim, na agenda imediata. O programa de governo vai sendo montado em pleno vôo. Publicado na revista Exame, edição 789, data de capa 09/04/2003

Deixe um comentário