PREPARANDO A ERA LULA

. Teste diário para Lula Encerrada a eleição, com a vitória mais do que provável de Luiz Inácio Lula da Silva, instala-se uma agenda comum entre o atual presidente e o eleito. A Fernando Henrique Cardoso interessa concluir seus oito anos em ambiente de paz. O pior que poderia lhe acontecer seria entregar a seu sucessor uma moratória e uma crise cambial. Como esse seria também o pior cenário para Lula iniciar seu tão procurado mandato, surge o interesse comum: ambos têm todos os incentivos para tentar debelar as turbulências econômicas. Há, como sempre, uma teoria conspiratória alternativa: interessaria ao futuro presidente que a crise mergulhasse até o fundo do poço já agora. Assim, o novo governo começaria tendo pela frente a difícil reconstrução, porém isento de responsabilidade pelo pior já acontecido. Mas para que esse extremo maquiavelismo fizesse sentido, seria preciso admitir que moratória e crise cambial são inevitáveis. Se o fossem, não haveria agenda comum, mas um ambiente de conflito. Ao atual governo interessaria empurrar a crise para janeiro. Ao próximo, ajudar a detoná-la o quanto antes. Não poderia haver cenário pior para o país. Trata-se, entretanto, de hipótese mais do que remota. Está virtualmente fora das possibilidades, basicamente porque os dois lados entendem que a crise pode ser controla. Mais do que isso, entendem que o esforço para evitar uma moratória e uma crise cambial produzirá melhor ambiente mesmo que seja frustrado ao final. Ou seja, deixar acontecer o pior – ou parecer que se está fazendo isso – mancharia a imagem do novo governo antes de sua inauguração. Do mesmo modo, armar a bomba para o sucessor mancharia a biografia de FHC e seus principais colaboradores na área econômica. Portanto, como ninguém parece ser louco para querer brincar com fogo, caem todos na mesma tarefa: todos contra a crise, tal é o mote que deve levar a uma forte colaboração entre a administração que sai e a que entra. É mesmo provável que a relação pessoal entre FHC e Lula torne-se cada vez mais amistosa. A transição que se inicia já é, de longe, a mais bem organizada da história republicana. O presidente atual nomeará, por indicação do eleito, uma equipe de assessores que terão cargos públicos e salários pagos pelo Estado. Já de saída se resolve o problema de como financiar o funcionamento do governo eleito – o que antes só podia ser feito com as “sobras de campanha”, dinheiro de má fama. Alguns desses assessores da transição terão nível de quase-ministro, inclusive com acesso a informações privilegiadas e, claro, legalmente responsáveis por elas. Receberão documentos e arquivos detalhados mostrando em que ponto se acha o governo, quais os projetos e obras em andamento e, especialmente, quais compromissos vencem ao longo de 2003, relacionados os instrumentos para cumpri-los. Por exemplo, a Secretaria do Tesouro Nacional, órgão do Ministério da Fazenda, promete entregar à próxima administração contas em dia e um caixa suficiente para os pagamentos dos primeiros meses. Há compromissos políticos, além dos financeiros. Na agenda internacional, por exemplo, logo no começo do próximo ano há negociações importantes em torno da Associação de Livre Comércio das Américas (Alca) e da liberalização do comércio agrícola, no âmbito da Organização Mundial do Comércio. E há, sobretudo, a revisão trimestral do acordo com o Fundo Monetário Internacional, marcada para dezembro próximo – o que remete à pauta principal desta transição, a administração da crise financeira. A transição ordenada e, digamos, amistosa terá parte importante nessa administração. Sendo a desconfiança em relação ao próximo governo um dos ingredientes básicos da crise – o temor de que imponha rupturas bruscas – o funcionamento normal da equipe de transição já criará um ambiente de distensão. Claro, entretanto, que algumas providências básicas são esperadas. Mais do que isso, são cobradas – a começar pela rápida definição de uma equipe econômica que seja imediatamente reconhecida como habilitada e capaz. Essa equipe, embora ainda não esteja no comando efetivo, poderá agir sobre as expectativas. Isso se faz com declarações, encontros com os principais agentes econômicos e o anúncio de medidas a serem implementadas e/ou mantidas. Nesse aspecto, as últimas declarações de campanha da equipe de Lula são positivas. A principal delas, repetida pelo presidente do PT, José Dirceu, e pelo coordenador da campanha, Antônio Palocci: o superávit primário das contas públicas será mantido no nível necessário para equilibrar a dívida, podendo ser maior que os atuais 3,75% do produto interno bruto. Além disso, essa equipe e as lideranças políticas do novo governo precisam começar a operar no atual Congresso, isso necessariamente com os quadros da atual administração que ainda detêm as maiorias necessárias. Há dois pontos principais na agenda parlamentar. Um é recompor o Orçamento da União para 2003. O projeto atual baseou-se em premissas já descartadas, como o crescimento da economia de 3% e inflação de 5%. Aquele será menor e esta será maior. Talvez se compensem no que se refere à arrecadação mas, de todo modo, será preciso recompor receitas para garantir o superávit primário. Em outras palavras, será preciso aumentar impostos. O segundo ponto é a votação da emenda constitucional que muda o artigo 192, referente ao sistema financeiro. Será preciso, entre outras coisas, eliminar o ridículo artigo que estipula juros máximos de 12% ao ano e, mais importante, criar as condições para que se vote ou se encaminhe a votação de um projeto de lei que regulamente a autonomia do Banco Central. Lideranças petistas, como o economista Guido Mantega, têm indicado que se vai caminhar nessa direção. Tudo considerado, o mais importante será criar um clima de transição política e econômica sem sobressaltos, de modo a se restaurar a confiança na capacidade de recuperação da economia brasileira. As lideranças do setor privado e suas entidades se aproximaram de Lula ao final da campanha e não pouparam declarações positivas. Lula tratou de tranquilizar todos e todos, empresários, executivos, banqueiros, nacionais e estrangeiros, responderam que ao final vai dar tudo certo. Mas, vamos falar francamente: eles disseram tudo bem, mas não venderam seus dólares, nem reiniciaram seus investimentos. Nas declarações não oficiais exprimem mais preocupação do que confiança. A pergunta chave é a seguinte: Dirceu e Palocci parecem sinceros e convincentes nas suas promessas de moderação e não-ruptura; mas conseguirá Lula combinar isso com as expectativas de forte mudança que sua eleição inspira em boa parte do eleitorado e, sobretudo, nas tradicionais bases petistas? Otimistas e torcedores responderão sim. Outros, não. Mas a resposta honesta a essa pergunta é uma só: ainda não se sabe. O governo eleito estará respondendo, na prática, assunto por assunto, desde 28 de outubro. Publicado na revista Exame, edição 778, data de capa 30/10/2002

Deixe um comentário