VOTO: BOLSO, RAZÃO E CORAÇÃO

. O encanto Quebrado      
As pessoas votam com a razão, com o coração e com o bolso. Quando um candidato consegue reunir as três motivações, dá um banho, como Fernando Henrique Cardoso em 1994, quando os eleitores, em vez de agitarem bandeirinhas nos comícios, exibiam as novíssimas notas de um real.     
Ali estavam representados o bolso (o aumento imediato do poder aquisitivo representado pela moeda estável); o coração (o sentimento de orgulho e dignidade pela posse de um dinheiro de verdade); e a razão (as pessoas compreendiam a importância econômica do combate à inflação).     
Em 2002, Lula, como candidato de oposição, naturalmente não podia se basear em realizações ? não havia alimentado o bolso de ninguém ? mas conseguiu criar a tríplice esperança. Para razão, o programa de retomada do crescimento (e os 10 milhões de empregos), sem brigar com o capital, o que animou empresários, trabalhadores e classes médias, todos cansados da baixa performance do governo FHC nesse quesito; para o coração, a promessa da grande mudança no espírito do país, cuja dignidade, supostamente entregue ao mercado neoliberal, seria recuperada aqui e lá fora. Para o bolso, a garantia de que todos ganhariam mais.     
Lula venceu em todos os estados no primeiro turno, menos no Ceará (vitória do local Ciro Gomes) e no Rio, onde levou o também local Garotinho ? e os dois fecharam com Lula no segundo turno.     
O que entregou nos seu governo?     
Não houve a retomada sustentada do crescimento. Se o Produto Interno Bruto crescer 3% neste ano, como se prevê fora do governo, a média anual de Lula será de 2,7% ao ano, só um pouco acima do obtido no período FHC. Com a desvantagem, para Lula, de que seus quatro anos foram os melhores da economia mundial nas últimas três décadas, contra a incrível seqüência de crises da era FHC.     
Sem entregar o crescimento, Lula perdeu aqueles estados dinâmicos onde o setor privado comanda a economia. Reparem bem: no Sul, no Centro-oeste (do moderno agronegócio) e em São Paulo, Lula voltou aos 35% de votos que costumava ter antes da onda vermelha de 2002. O pessoal não acredita mais que Lula possa reduzir a carga tributária ou que promova investimentos públicos em infra-estrutura ou ainda que crie condições para investimentos privados.     
Empresários, executivos, administradores, que chegaram a se animar com ?visão desenvolvimentista? de Lula, abandonaram essa ilusão já faz algum tempo. A classe média, aos poucos, foi junto.     
Lula também não entregou a ?recuperação da dignidade?. Internamente, apanhado na corrupção, caiu no incrível equívoco de sustentar que ?são todos iguais?. Na diplomacia, seu encanto demorou pouco para se dissolver. Se, em 2003, era visto como o líder da esquerda democrática internacional – Bush chegou a pedir a Lula que desse um jeito no Chávez ? hoje aparece como o presidente que foi ludibriado pelo mesmo Chávez e seu Sancho Pança, o Evo Morales.     
 Lula entregou o Bolsa Família (dinheiro direto no bolso) e parte do salário mínimo. Não dobrou seu valor real, como havia prometido, mas o último aumento foi expressivo, com enorme impacto em especial na vida das famílias que vivem da aposentadoria rural nos grotões. Isso explica a maior parte da votação no Norte e Nordeste.     
Lula atendeu ainda sua clientela tradicional, os sindicatos e suas centrais, as ONGs e outras entidades que formam os movimentos sociais, os funcionários públicos e trabalhadores de estatais. Não saiu a reforma trabalhista, o poder dos sindicatos foi reforçado, ONGs e entidades receberam milhões de verbas públicas, governo e suas empresas contrataram e elevaram salários e benefícios. Isso, por exemplo, explica boa parte dos votos no Rio de Janeiro, com sua grande concentração de servidores, aposentados e empregados de estatais.     
Essa mistura de voto do bolso e ideológico é suficiente para um segundo mandato? Talvez, mas é pouco.      
Lula precisa de votos em São Paulo, no Sul e no Centro-oeste desenvolvidos. A demanda ali é por um programa de crescimento baseado no setor privado, com menos governo (menos impostos, menos gastos, etc). Eis um exemplo significativo: quando se fala em aposentadoria nesses estados, o pessoal pensa em previdência privada.     
Boa parte do encanto de 2002 já se foi. Demora para isso se transformar em voto contra, mas uma hora o pessoal se dá conta. E tanto mais rápido quanto mais consistente for a oposição. Logo veremos.  Publicado em O Globo, 05 de outubro de 2006

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