SOBRE TRABALHO INFANTIL

. BOAS INTENÇÕES QUE MATAM No clube de tênis, há um garotinho que acaba de completar 15 anos e revela talento para o jogo. Trabalha ali como pegador de bolas. Ganha um pequeno salário do clube mais caixinha dos jogadores. O dinheiro é pouco, mas ajuda muito a ele e à família. E, mais importante, a situação permite que ele treine nos momentos em que as quadras ficam vazias ou quando falta um parceiro em algum jogo. Muitos jogadores profissionais começaram assim, muitos professores de academia também. Pois bem, se o fiscal do Ministério do Trabalho aparecer por lá, o garoto perde o emprego (e a chance de treinar) e o clube leva uma multa por recorrer ao trabalho infantil ilegal. Mesmo que o menino esteja na escola e exiba boletim marcando presença e notas que aprovam. Está na Constituição brasileira: ninguém pode trabalhar com menos de 16 anos. Na semana passada, o Ministério do Trabalho formalizou o princípio em declaração à Organização Internacional do Trabalho. Assim, para efeito de tratados internacionais, a regra brasileira fixa como ilegal o trabalho antes dos 16 anos. Entre 14 e 16, o menina ou a menina podem ser aprendizes, mas isso é coisa difícil. O aprendizado é previsto em lei e regulamentado pelo Ministério do Trabalho. Trata-se, pois, de processo formal, em escolas profissionalizantes ou nas empresas, onde o garoto ou a garota aprende uma profissão regulamentada. Para resumir, assim como um clube de tênis não pode empregar meninos com menos de 16 anos para pegar bola, um supermercado não pode contratar adolescentes abaixo dessa idade para fazer pacotes, nem uma pequena loja pode admitir para serviços gerais (ir ao banco, entregar uma encomenda, ajudar no balcão). Não são profissões regulamentadas, de modo que ninguém pode ser aprendiz de pegar de bola ou de empacotador. Nossas crianças, portanto, estão protegidas. Mesmo? O argumento a favor da proteção legal é conhecido, justo e internacional. As crianças devem estar na escola, não trabalhando numa mina de carvão em jornadas de 12 horas, como já se viu em muitos lugares. Além disso, empresários inescrupulosos recorrem ao trabalho infantil para pagar salários indecentes, numa dupla exploração. Portanto, é preciso lei para impedir essas injustiças. Qualquer criança de 14 anos, mesmo não podendo trabalhar, concordaria com isso. A questão é: qual lei? Qual proteção? No caso brasileiro, a regra constitucional, na maior parte dos casos, vai levar ao seguinte: as crianças perderão o emprego e não ganharão nada no que se refere a aprendizado profissional. Clubes de tênis, supermercados de médios a pequenos, lojas e fábricas menores não têm curso formal de aprendiz. Portanto, para cumprir a lei, simplesmente colocarão na rua os menores de 16 e contratarão maiores. Os menores perderão a vaga de pegador de bola (ou de empacotador, engraxate, serviços gerais) e continuarão na mesma escola de antes, se estavam nela. A alternativa para esses e essas adolescentes não é estudar ou trabalhar. É estudar e trabalhar ou só estudar. Como são de famílias pobres, precisam daquela renda, que acaba assim sendo confiscada pela lei. A propósito, sendo este o país das liminares, fico pensando se não cabe uma liminar para garantir o direito ao trabalho – à renda, à sobrevivência – desses menores. Improvável, porém. Não é politicamente correto, nem dará boa mídia. A providência ideal é tirar crianças de trabalhos penosos, colocá-las nas escolas e dar uma renda às suas famílias. Entre esse ponto e proibir que garotos ou garotas que estão na escola e passam de ano façam meio expediente em um serviço adequado, vai uma larga diferença. Como tem notado o professor José Pastore, o correto seria fazer como nos Estados Unidos. A regra é flexível. Não estipula uma proibição geral, mas relaciona quais os trabalhos permitidos para cada faixa de idade. Por exemplo, crianças de 12 anos podem entregar jornais em bairros residenciais, mas não carregar sacolas em supermercados. Nota ainda Pastore, e este é um ponto crucial, que a situação brasileira fica complicada nas negociações internacionais para a abertura comercial. Com certeza, as novas regras dirão que um país poderá impor barreiras a produtos fabricados com trabalho infantil, sendo este definido conforme a lei do país exportador declarada à OIT. Ora, diz Pastore, se houver adolescentes com menos de 16 anos fazendo algum serviço leve numa empresa têxtil, isso poderá ser utilizado como argumento para se impor barreiras à exportação dessa companhia. Tudo considerado, o certo no Brasil seria uma emenda constitucional eliminando a regra do trabalho aos 16 anos e fixando uma legislação mais flexível. Ponto essencial é vincular o trabalho à frequência nas escolas, situação aliás que já ocorre. Mais de 90% das crianças que trabalham já estão na escola. E, lógico, a jornada das crianças tem de ser menor, para sobrar tempo para escola, lição de casa e lazer. Mas como quem apresentar tal emenda será acusado de defender a exploração das crianças, o mais provável é que fique por isso mesmo. Uma situação comum por aqui: a lei bem intencionada que não funciona e que quando funciona só serve para tirar empregos de quem precisa ou para fazer a alegria dos fiscais inescrupulosos. O fato simples é o seguinte: proibir o trabalho de adolescentes menores de 16 anos não coloca nem um jovem a mais na escola, muito menos na escola profissionalizante. (Publicado em O Estado de S.Paulo, 18/06/2001)

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