. A reforma tributária, tal como saiu da primeira votação na Câmara dos Deputados, pode ser assim qualificada: tem coisas boas, mas . . . Ou, o que dá no mesmo: tem coisas ruins, mas . . .E não se pode dizer qual lado vai prevalecer. Eis um exemplo: a desoneração das exportações foi inteiramente para a Constituição, o que é uma poderosa garantia de que não se voltará ao absurdo de cobrar ICMS sobre o produto brasileiro comercializado no exterior. Mas para compensar os Estados sobre essa perda de ICMS, ampliou-se o fundo federal de R$ 4 bilhões para até R$ 8 bilhões, a ser irrigado com recursos do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPII) e do Imposto de Importação (II). Ora, o II é imposto regulatório, utilizado pelos governos para abrir ou fechar a entrada de certos produtos. Assim, é instrumento de negociações comerciais nas quais os países trocam medidas de abertura. E como o governo federal poderá agora negociar, por exemplo, uma redução geral de II ou mesmo a eliminação em alguns casos se o dinheiro passa a pertencer também aos Estados? Por outro lado, a reforma votada até aqui estabelece que se cobrará Imposto de Exportação sobre serviços. Também passará a ser taxada a importação de serviços, assim como se aplicará Pis/Cofins sobre bens importados. Ou seja, enquanto se desonera o comércio exterior numa ponta, se aumenta a carga em outra. Alega o governo Lula que é preciso taxar as importações para equilibrar a carga com a produção nacional. Pode ser, mas eleva a carga tributária. Estima-se que o governo pode arrecadar R$ 4 bilhões com as cobranças diversas sobre importação. E não se importam apenas bens supérfluos. O país compra no exterior coisas como trigo, fertilizantes, milho, componentes eletrônicos diversos, de modo que um sem número de produtos essenciais terão preços elevados. Outro exemplo: a unificação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) em legislação federal, substituindo os atuais 27 códigos estaduais, com 5 alíquotas em vez das atuais sabe-se lá quantas, simplifica o sistema e, assim, favorece a eficiência econômica. Mas a distribuição dos produtos pelas cinco alíquotas pode levar a um aumento de carga tributária. Tome-se o caso de um produto que “paga” 7% de ICMS em um Estado e 12% em outro. Pelo novo sistema, deverá ser a mesma alíquota para todos. No exemplo, vai tudo para 7% ou para os 12%? Ganha um crédito de ICMS quem encontrar alguém que acredite na uniformização pela alíquota menor. Além disso, definiu-se que a alíquota máxima do ICMS será de 25%, para evitar aumentos. E só mesmo em um país já anestesiado por seguidas altas de impostos se poderia imaginar uma garantia dessas. Ocorre que a alíquota de 25% do ICMS representa, na verdade, 33,33% do valor do produto ou da operação. O teto de 25% já existia e, para driblá-lo, inventou-se há muito tempo que o ICMS incide “por dentro”, isto é, o imposto integra a base de cálculo. Foi claramente para enganar o contribuinte e esconder uma carga tributária efetiva de 33,33%. O resultado é um absurdo monumental: paga-se imposto sobre a operação de pagar imposto. Uma conta de telefone de R$ 52,82 tem exatos R$ 13,21 de ICMS, equivalente a 25% daquele valor total, conforme se informa na fatura. Agora, retire da conta o valor do imposto. Dá R$ 39,61, que é o preço do serviço antes da taxação. Aplique aí 25% e encontrará R$ 9,90. Aplique 33,33% e encontrará os R$ 13,21 efetivamente pagos. Os R$ 3,31 adicionais formam a parte equivalente a imposto sobre imposto. Pois ficou por isso mesmo na reforma. Sem contar que, hoje, poucos produtos caem na alíquota de 25%, existindo uma real possibilidade de que, na uniformização nacional, se amplie esse número. Outro exemplo: a reforma prevê o fim da cumulatividade da Cofins, contribuição de 3% sobre faturamento que incide em cada fase da cadeia produtiva. Trata-se de uma antiga e unânime reivindicação. Há tempos se formou um consenso em torno do caráter antieconômico dos impostos que incidem em cascata. O governo federal faz alarde do atendimento desse antigo pleito. Mas quando se eliminou a cumulatividade da outra contribuição, o PIS, a alíquota saltou de 0,65% em todas as fases para 1,65% em determinados pontos, no que resultou num aumento da arrecadação. Ou seja, alguns setores passaram a pagar mais. Qual a garantia de que algo semelhante não vai ocorrer na mudança da base da Cofins? Além disso, se o objetivo de uma reforma tributária é devolver eficiência e competitividade à economia, não seria o caso de se pensar na correção desse exagero do PIS? Outro exemplo: a reforma determina a redução do IPI sobre máquinas e equipamentos, o que é positivo. Mas não foi a isenção prometida e fica o ICMS, de modo que o Brasil, um país necessitando aumentar o nível de investimentos, continua a ser um dos poucos que taxa investimentos na produção. Aí está o problema geral da reforma. Admite como fatos da vida os maiores absurdos do nosso sistema tributário. O governo Lula garante que não haverá aumento da carga tributária, hoje de 36% do Produto Interno Bruto. Ora, essa é a nossa dificuldade central, impostos excessivos que retiram recursos demais das pessoas e empresas e assim, reduzem a competitividade geral da economia. Também lançam companhias e profissionais na informalidade, pela impossibilidade de suportar tal carga de impostos. Ou seja, uma verdadeira reforma deve ter o objetivo de reduzir e simplificar a carga tributária. Alega o governo que isso não é possível, dada a dificuldade de corte de gastos nos governos federal, estaduais e das prefeituras. Há, portanto, uma questão anterior, a exigir a reforma do setor público, fiscal e administrativa. Como se considera esta também muito difícil, a saída do governo foi montar uma reforma quebra-galho, que trata de redistribuir a atual carga tributária. E para arranjar os votos necessários, o governo Lula acabou concordando com uma redistribuição do bolo, aumentando a parte dos Estados e municípios. Segundo diversos cálculos, algo equivalente 0,45% do PIB será o ganho das unidades da federação e, pois, a perda da União. Mas a reforma abre inúmeras possibilidades para que a União recupere essa perda, assim como deixa oportunidades para que governos estaduais e prefeituras aumentem suas receitas. No caso das prefeituras, por exemplo, garantiu-se a contribuição da taxa de coleta de lixo, hoje uma cobrança polêmica, a ser instituída por legislação municipal ordinária. E está na cara que todas as prefeituras vão cobrar. No lado da justiça social, o governo Lula ressalta a importância da desoneração de uma cesta básica de alimentos e remédios. Mas não saiu bem uma desoneração, e sim a cobrança de ICMS pela menor alíquota nacional. Pode ser zero, diz o governo. Mas pode não ser – e parece claro que muitos Estados se recusarão a zerar essa receita. Sendo assim, uma no cravo outra na ferradura, essa reforma, tal como se encontra até o momento, pode resultar num avanço, se prevalecerem apenas os aspectos positivos, ou num desastre. Tudo dependerá de legislações infraconstitucionais, nos três níveis da federação, de modo que não se pode ainda dizer como ficará. O que se pode, sim, dizer é que a sociedade, as empresas e as pessoas precisam se ocupar disso, pois deixada a coisa por conta de Brasília, dá aumento de imposto. Publicado na revista Exame, edição 801, data de capa 18/09/2003
SOBRE A REFORMA TRIBUTÁRIA
- Post published:9 de abril de 2007
- Post category:Coluna publicada em O Globo
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