SOBRE A POLÍTICA EXTERNA DE LULA

. Dois pobres não dão um rico O presidente Lula aproveitou os últimos eventos internacionais em São Paulo para voltar à tese de que a política externa brasileira pode mudar a geografia comercial do mundo, ao consolidar uma aliança Sul-Sul (dos países emergentes, em desenvolvimento e/ou pobres) para enfrentar os ricos do Norte. Trata-se de uma visão fortemente ideológica, que transfere para o cenário internacional a crítica da esquerda clássica ao capitalismo – a de que, nesse regime, os ricos sempre enriquecem e os pobres sempre ficam mais pobres. Assim, haveria uma espécie de luta de classes entre os países, com os ricos explorando os pobres, com base na força e num sistema de instituições, como o FMI, por exemplo. Logo, a palavra de ordem é : “países pobres do mundo, uni-vos”, para mudar o sistema, ou, como isso não está na moda, mudar a geografia comercial do mundo. Esse seria o grande objetivo histórico de uma aliança liderada, principalmente, por Brasil, China, India e África do Sul, os grandes do mundo emergente. É interessante notar que essa visão internacionalista do presidente Lula não combina com a política econômica interna – cujos objetivos são os de reduzir o endividamento público, manter a inflação no chão, em regime de câmbio flutuante, e com medidas microeconômicas que melhorem o ambiente de negócios e favoreçam o investimento privado. O FMI, por exemplo, e a comunidade financeira internacional acham muito boa essa estratégia. É parte essencial dessa política a ampliação das exportações e importações, visando maior abertura e internacionalização da economia. A idéia é que isso reduz a vulnerabilidade externa e dá mais eficiência à produção local. Ou seja, estamos falando de capitalismo moderno e globalizado. Não passa pela cabeça dos formuladores de política econômica que tais objetivos possam ser obtidos por uma frente Sul-Sul contra os ricos. Eles evitam o tema – pois a política externa entusiasma o presidente, que, nela, se encontra de novo com o líder esquerdista que era nos assuntos internos. Mas é evidente que, do ponto de vista da política econômica, o caminho correto é o dos acordos de livre comércio, especialmente com os países mais ricos, pela simples e boa razão de que lá estão os consumidores que mais gastam. O que há de comum entre os dois países mais citados como casos de sucesso em passar rapidamente da pobreza à riqueza, Japão e Coréia do Sul? Ambos venderam, e vendem, largamente no mercado americano. A China repete a estratégia, com exportações anuais para os EUA na casa dos US$ 160 bilhões. Ou seja, os chineses vendem só para os americanos o dobro do que o Brasil vende para o mundo todo. A India, também citada pelo seu crescimento recente, tem como parte essencial de sua estratégia a prestação de serviços, via Internet, para as grandes multinacionais internacionais, especialmente as americanas. E a África do Sul, enquanto participa da retórica esquerdista internacional, trata de negociar, individualmente, um acordo de livre comércio com os EUA. O presidente Lula parece acreditar na solidariedade internacional entre os povos pobres, assim como os trabalhadores do mundo todo deveriam ser solidários na luta contra o capital. Por isso, diz Lula que o Brasil, tendo a opção de importar o mesmo produto de um país rico e de um pobre, preferirá comprar do pobre mesmo pagando mais caro. Parece uma boa intenção, mas é um equívoco monumental de política externa. Primeiro, que o comércio externo brasileiro é feito basicamente entre empresas privadas – e não faz sentido esperar que elas topem pagar mais caro por razões políticas. Simplesmente, perderiam competitividade, interna e externa. O governo e suas empresas poderiam fazer isso? Poderiam, mas seria gastar dinheiro público – e perder eficiência no caso das estatais – em nome de uma duvidosa solidariedade. Duvidosa porque ineficaz e porque ninguém mais está nessa. A velha União Soviética fazia isso com seus países aliados, que na verdade eram subordinados, satélites. Cuba vendia açúcar caro e recebia gasolina barata. Não deu muito certo, como se sabe. Hoje, sem guerra-fria, com o triunfo do capitalismo globalizado, os países se movem com base em seus interesses econômicos e comerciais. É isso que faz os chineses recusarem a soja brasileira logo depois de terem estendido um tapete vermelho para o presidente Lula e terem ouvido, mostrando simpáticos sorrisos, a tese sobre a parceria estratégica entre os dois países. Parceria, hein! Além disso, a tese do Sul-Sul parte do suposto de que se pode construir um grande mercado juntando os países pobres. Não forma. Onde a China colocaria os US$ 160 bilhões que vende nos EUA? O governo chinês sabe que dois pobres não dá um rico. E que precisa vender para os ricos. Para os chineses, a cadeia de supermercados Wall Mart é mais estratégica do que o Brasil, pela simples e boa razão de que compra muito mais produtos made in China. Lula tem um ponto importante em sua atividade econômica internacional – a liberalização do comércio agrícola. Para isso, tem aliados importantes entre países emergentes grandes produtores agrícolas (como a Austrália, mas não a China, importadora) e tem aliados dentro dos países ricos, os setores locais que não se conformam com o caminhão de dinheiro público gasto com um punhado de agricultores ricos. Mas é curioso que a luta pela abertura do mercado agrícola é uma política liberal, tanto que tem o apoio ostensivo de uma publicação conservadora como a revista The Economist. Ou seja, a suposta estratégia Sul-Sul não adianta nada para esse objetivo. Publicado em O Estado de S.Paulo, 21/06/2004

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