SIGILO BANCÁRIO E DEMOCRACIA

. Abaixo a Justiça? Estão tentando colocar o debate nos seguintes termos: Você é contra ou a favor dos sonegadores? É uma prática autoritária e demagógica. Impõe-se uma questão para a qual só há uma resposta possível. Dada a resposta fatal – contra os sonegadores – vem uma sequência inevitável: então, você tem de ser a favor da quebra do sigilo bancário sem necessidade da Receita pedir autorização judicial. Fica implícita uma grave acusação à Justiça, a de que protege os sonegadores de tal modo que é preciso passar ao largo dela para apanhar os bandidos. Eis aí uma grave ameaça à democracia e à civilização. Se admitimos que a Justiça é um obstáculo à captura e punição dos sonegadores, então podemos admitir que é o mesmo obstáculo à captura e punição de qualquer criminoso. Assim, por que não autorizar o Ministério Público e a polícia a colocarem suspeitos na cadeia também autorização judicial? Se o governo pode dispensar a Justiça para caçar sonegadores, por que não aprovar uma lei que torne as privatizações imunes às contestações judiciais? As oposições, que votaram alegremente a proposta de permitir quebra de sigilo sem autorização judicial, não percebem que estão criando cobra. Ou percebem, mas já contam com uma breve ascensão a um governo cada vez independente das contestações na Justiça. O nome da coisa é autoritarismo e, em estado mais avançado, pura ditadura. Podem achar que estamos exagerando – afinal é só para pegar uns sonegadores – mas basta dar uma olhada na história das ditaduras: a primeira coisa a fazer é neutralizar, afastar ou fechar a Justiça. Nem faz muito tempo que saímos do regime militar. O governo dos generais começou cassando alguns juízes, nomeando outros mais amigáveis e terminou com o poder de fazer qualquer coisa sem controle do Legislativo ou da Justiça. Sim, o momento é diferente e há mais democratas do que outra coisa tanto no governo quanto nas oposições. Mas o risco é maior quando homens de bem começam a achar que podem se livrar de alguns embaraços constitucionais para aplicar suas boas intenções. Acresce que há um ótimo pretexto: a Justiça brasileira, de fato, passa por um momento lastimável. Que prestígio pode ter um Judiciário que se dedica a armar quebra-galhos para aumentar seus próprios salários? Que autoridade moral pode ter um Supremo Tribunal Federal cujo vice-presidente vive com dois auxílios moradias para uma mesma moradia? Ou, indo pelo lado da eficiência econômica, de que serve um Judiciário pródigo na concessão de liminares contra privatizações e cobrança de impostos? Atrapalha, não é mesmo? Para o governo de plantão seria muito mais fácil a vida sem Judiciário. Para todos os demais, seria um perigo. Como já foi entre nós. Eis aí, por pior que seja o Judiciário, será sempre ainda pior qualquer tentativa de criar atalhos que passem ao largo dos tribunais. Vejam o comportamento de Al Gore. Está claro que ele ganhou as eleições na Flórida e que só não levou porque a Suprema Corte tomou uma decisão partidária, imposta pelos juizes conservadores, pró-republicanos, que barrou a contagem de votos. Mas o discurso em que Gore admite a derrota é uma peça notável. Lamenta a decisão da Corte, demonstra que ela está errada, mas declara seu respeito mais que à Constituição, ao conjunto das instituições. No caso brasileiro, está claro que o caminho correto é uma Reforma do Judiciário, pelos trâmites constitucionais, bem entendido. Ocorre que uma reforma dessas dá uma trabalheira danada – é preciso convencer, persuadir, votar. Mais fácil tirar a Justiça do caminho. Tudo considerado, é efetivamente muito grave essa lei aprovada por unanimidade no Senado que autoriza a Receita Federal a quebrar o sigilo bancário e fiscal de qualquer suspeito – e a autuar – sem necessidade de pedir autorização à Justiça. A questão que deveríamos estar debatendo é outra, bem diferente: quem, e em quais condições, pode quebrar o sigilo bancário de pessoas e empresas? Ou ainda, se quisermos deixar claro a alternativa: quem pode quebrar o sigilo, o juiz, em processo público, com acusação e defesa, ou o fiscal, a seu exclusivo juízo? E por falar em ditadura Trinta e dois anos atrás, em 13 de dezembro de 1968, o regime militar brasileiro editava o Ato Institucional número 5 e se outirgava poderes absolutos. O então vice-presidente, Pedro Aleixo, um liberal à antiga, protestou junto ao então presidente, o marechal Arthur da Costa e Silva. O marechal respondeu que não haveria problema porque ele usaria o poder com moderação. E Pedro Aleixo: “Não me preocupo com o senhor, mas com o policial da esquina”. Não faz muito tempo que se apanhou a “máfia dos fiscais” da prefeitura de São Paulo. Já pensou quanto valeria para esses fiscais de esquina poder de ameaçar quebrar o sigilo de suas vítimas? Um pouco de história Já houve um tempo em que o dinheiro de cada pessoa, suas propriedades e seus negócios eram considerados absolutamente privados. Em muitos lugares, podia-se movimentar a conta bancária apenas com um número-senha. No banco, apenas uma pessoa, em geral o próprio banqueiro, sabia relacionar o nome dos clientes com o número das respectivas contas. Isso acabou no capitalismo moderno. Primeiro, por causa dos ditadores que depositavam dinheiro de seus países em contas particulares, então invioláveis. Quanto as ditaduras saíram de moda, os processos esbarravam no sigilo bancário. Mas o golpe fatal foi a lavagem de dinheiro do crime, especialmente do narcotráfico, um fenômeno contemporâneo. Verificou-se que a velha Máfia e os novos barões da droga valiam-se das facilidades do sigilo bancário para esquentar e legalizar o dinheiro obtido com a venda de drogas e de proteção. A eliminação do sigilo começou nos Estados Unidos, o centro do narcotráfico. E começou com os bancos sendo obrigados a comunicar ao Banco Central qualquer depósito acima de US$ 10 mil. Hoje, em alguns estados americanos, o caixa do banco é obrigado a alertar seus chefes se desconfiar do “jeitão” do depositante, qualquer que seja o valor depositado. No mundo todo, hoje em dia, prevalece a regra da transparência: o cidadão é obrigado a declarar sua renda, suas propriedades e seus negócios e o Estado tem o direito de investigar isso. Mesmo a Suíça cedeu à pressão internacional. Recentemente, por exemplo, o governo suíço informou quanto o juiz Nicolau tem depositado em bancos daquele país. O dinheiro está bloqueado, mas por decisão judicial e só será retornado ao Brasil se o juiz for condenado em setença irrecorrível. Mesmo nos Estados Unidos – mais avançados na exigência de transparência – e mesmo nas investigações de narcotráfico, os promotores, a polícia federal e a Receita só podem abrir a conta bancária de qualquer pessoa ou empresa com autorização judicial. (O Estado de S.Paulo, 18/12/2000)

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