SEM ALCA, QUEM PERDE É O BRASIL

. Jogar para a torcida não dá dinheiro O Brasil está chegando aos US$ 70 bilhões de exportações/ano, o que é indiscutível motivo de comemoração. Trata-se de um salto de 40% sobre as vendas externas de 1998, último ano antes da primeira megadesvalorização do real. Além disso, o Brasil aumentou sua participação no mercado mundial e conquistou diversos nova freguesia. Mas é preciso fazer uma outra conta. Os US$ 70 bilhões deste ano representam cerca de 32% da dívida externa. Ou, a dívida equivale a 3,12 anos de exportação, o que é uma relação muito alta. No caso do México, por exemplo, é de um por um, dívida e exportações em torno dos US$ 160 bilhões. Esse é um importante indicador de vulnerabilidade externa, um dos fatores pelos quais o risco Brasil é cerca de três vezes superior ao risco México. Tudo isso para entrar em um dos assuntos do momento, que são as negociações comerciais externas. Basta olhar os números para se concluir que o Brasil precisa aumentar muito mais suas exportações. Vale dizer, precisa de mercados. E onde estão os maiores mercados? Países que cresceram rapidamente nas últimas décadas têm um ponto comum: vender pesadamente nos Estados Unidos. Foi a história do Japão e da Coréia do Sul, é a história atual da China e do México.O México conseguiu isso após o Acordo de Livre Comércio da América Norte, com Estados Unidos e Canadá, assinado em 1994. Nesse ano, os mexicanos exportaram US$ 61 bilhões, saltando para US$ 170 bilhões em 2001, quase triplicando as vendas em sete anos. A queda recente deve-se à recessão americana, que é o outro lado da moeda. Cerca de 80% das exportações mexicanas vão para os Estados Unidos, de modo que é direta a dependência em relação ao consumidor americano. Por isso os mexicanos têm feito um esforço para diversificar e já têm com a União Européia um acordo comercial, relativamente limitado, é verdade, mas muito mais do que o obtido pelo Brasil, ainda enredado em negociações. Completando a tese: o Brasil precisa aumentar dramaticamente suas exportações e também as importações (mais volume de comércio externo). Isso é uma condição necessária para o crescimento econômico duradouro. Logo, acordos de livre comércio interessam ao país e, muito especialmente, com os países ricos, pela simples e boa razão de que compram mais. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva anda entusiasmado com sua política externa, particularmente na vertente comercial. Disse que o Brasil deu uma trucada nos ricos, sobretudo nos Estados Unidos, ao organizar o G-22, grupo de países que rejeitou a proposta de negociação apoiada pelos EUA e União Européia na reunião da Organização Mundial do Comércio, em Cancun, no México. Trucar, no caso, é enganar, dar um drible. Mas o gol não saiu. Ficou tudo mais parecido com aquele tipo de time brasileiro que joga bonito, entuiasma a torcida mas não leva a taça. A reunião da OMS fracassou, também por outras razões, incluindo atitudes radicais e bloqueadoras da União Européia. De todo modo, permaneceu o impasse G-22 x EUA/Europa e, com isso, ficou mais distante e mais difícil a próxima rodada de abertura comercial. Todos perdem, se aceita a tese de que quanto mais comércio mundial, mais crescimento. Mas o Brasil, que precisa tirar diferença e elevar exponencialmente suas exportações, perde muito mais. As negociações da Alca (Área de Livre Comércio das Américas) vão pelo mesmo caminho do fracasso, também com um impasse Brasil x EUA, de novo verificado na reunião da semana passada em Trinidad Tobago. Há um confronto explícito em torno da questão agrícola. Estados Unidos e União Européia violam escandalosamente todas as regras do livre comércio, escritas ou não, quando subsidiam e protegem seus produtores agrícolas. Provocam quedas de preços nos mercados internacionais, impõem prejuízos aos países em desenvolvimento mais competentes no agronegócio e também aos países pobres de monocultura. Por exemplo: produtores de açúcar perdem com os subsídios europeus, produtores de algodão com os subsídios americanos. Portanto, o Brasil tem toda razão em colocar na mesa a questão agrícola e faz bem em tentar juntar o maior número de países nessa posição, como é o caso do G-22, no âmbito da OMC, para negociar com mais cartas na mão. Também faz sentido tentar reunir países americanos em torno da posição brasileira no caso da Alca, mas nada disso dispensa uma visão realista, que é a seguinte: nessa história, todos os países estão mais interessados é no enorme mercado americano. O chanceler Celso Amorim já disse que a Alca não é prioridade para o Brasil. A prioridade seria fortalecer o Mercosul e, a partir daí, ampliar relações com os demais emergentes. O presidente Lula tem dito que é preciso se fortalecer com essas alianças com os colegas do Sul para encarar o império americano. Portanto, o governo Lula aposta numa série de acordos bilaterais ou entre grupos de países emergentes em geral, e sul-americanos em particular. De fato, Lula recentemente citou como exemplo de êxito dessa estratégia a atração do Peru para o Mercosul. Mas o Peru alinhou-se com os EUA em Trinidad Tobago e, na verdade, está pedindo a abertura de negociações para um acordo bilateral com Washington. O Uruguai está quase deixando o Mercosul para se acertar com os americanos. E, no que seria um revés enorme para o Brasil, circularam rumores em Trinidad Tobago de que a Argentina, sócio maior do Mercosul, também disse aos EUA que deseja abrir negociações diretas. É lógico. O pessoal gosta de Lula, mas isso não dá dinheiro. Entre uma negociação bilateral com os EUA ou com o Brasil, todos vão preferir a primeira alternativa, pela simples razão de que os americanos têm mais dinheiro e mais consumidores. O governo brasileiro ofereceu US$ 2,6 bilhões do BNDES para financiar o comércio com Argentina, Venezuela e Bolívia. Não saiu um centavo até agora, por problemas deles e nossos. E se o Brasil voltar a crescer, como se espera, o BNDES vai ter muita gente para financiar aqui dentro mesmo. Difícil sobrar algum para a política externa. Finalmente, há comércio além da agricultura. Muitos setores da economia brasileira sairiam ganhando com a abertura do mercado americano, mesmo em uma Alca sem agricultura. Assim como os Estados Unidos teriam resultados positivos em uma Alca sem questões como patentes e investimentos, assuntos que querem enfiar no tratado agora mas poderiam deixar de lado em uma troca. Quer dizer, há espaço para acordo apesar das diferenças. Resumo da ópera: o governo brasileiro precisa trucar, gritar bem alto, avançar pelas beiradas, dar caneladas, mas sem perder a realismo. Para crescer, o Brasil precisa de mais comércio externo, logo, de mais mercado. Os adversários da Alca costumam dizer que os EUA têm interesse é no mercado brasileiro, de modo que se o Brasil engrossar, ou não sai nada ou sai algo a favor do Brasil. É errado. O mercado americano é muito mais importante para o Brasil do que o mercado brasileiro para os EUA. Se não sai a Alca, o maior perdedor é o Brasil. E se a coisa envereda para as negociações bilaterais, o Brasil corre o risco de se isolar. Brigar com os americanos e com os europeus ricos é legal, dá torcida, mas não dá dinheiro. Notem: até a Venezuela do companheiro Hugo Chavez, que deve tanto a Lula, alinhou-se com a proposta americana em Trinidad Tobago. Publicado em O Estado de S.Paulo, 06/10/2003

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