. Salário justo?
O reajuste salarial dos deputados e senadores melou, mas não o assunto. Primeiro, porque foi feio, digamos assim, o modo pelo qual o aumento caiu. O presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, tentou articular um canetaço, isto é, a concessão do reajuste para todos ? parlamentares e juízes ? com três assinaturas, a dele e as dos presidentes da Câmara, Severino Cavalcanti, e do Senado, Renan Calheiros. Este último não topou e a manobra falhou.
Que Severino e sua turma tenham cogitado do canetaço, até faz sentido. Eles sempre defenderam o aumento e sempre acharam que o Estado serve para isso mesmo, ajudar os amigos do rei. Se não fosse assim, de que adiantaria ter feito o rei?
Mas e o ministro Jobim? Político ora na magistratura, ele tem prestado bons serviços nas duas carreiras, como é seu empenho atual na reforma do Judiciário. Como pode ter sequer cogitado da hipótese do canetaço?
O ambiente político é totalmente hostil. Há um movimento forte de resistência a mais um pacote de aumento de impostos ? a MP 232 ? indicando que já se passou do limite tolerável de carga tributária no país. Esse movimento toma uma direção adequada, que é a de se opor ao aumento de gastos do governo, afinal a origem da ?necessidade? de mais receita.
No meio disso, no Executivo, o governo Lula revela-se cada vez mais paranóico. Um lado gasta e só pensa em aumentar os gastos ? e o presidente Lula promete atendê-los. Outro lado corta o Orçamento e limita despesas, tudo com a assinatura de Lula.
Mistura-se isso tudo e resulta que o governo gasta demais, aumenta gastos, eleva impostos e, ao mesmo tempo, deixa de fazer um monte de coisas boas ? como a construção de estradas ou a distribuição de remédios ? porque falta dinheiro. As pessoas se irritam porque pagam mais impostos, enquanto seus carros caem em buracos.
Dá para pensar em aumentar salários de parlamentares e de juízes? E não é um reajustezinho de circunstância, mas uma talagada. Será que esse pessoal perdeu a noção de realidade?
Mas, pode-se argumentar, cabe discutir qual o vencimento justo de parlamentares e juízes. Jobim e seus colegas de Corte, por exemplo, continuam acreditando que é justo aumentar os vencimentos dos magistrados do Supremo dos atuais R$ 19.115 para R$ 21.500 agora e para R$ 24.500 em janeiro do próximo ano, perfazendo reajuste de 28%, bem superior aos índices de inflação. E o projeto vai a votação no Congresso.
E então, justo ou injusto? Depende do critério. Alguns juízes comparam seus vencimentos com a renda dos mais badalados escritórios de advocacia ? mas isso não faz sentido. Na advocacia liberal, trata-se de mercado privado e competitivo, que remunera pelos resultados e pune a ineficiência. Não há nada disso no setor público. O concurso é difícil, sem dúvida, mas certamente não mais difícil do que abrir e manter uma rentável banca de advocacia. Além disso, como em qualquer mercado, apenas uns poucos alcançam as grandes remunerações. Estão certamente em minoria os advogados brasileiros que, no ponto alto da carreira, fazem 19 mil por mês.
Mas pode-se comparar com outros países. A R$ 19.115, um juiz da Suprema Corte ganha R$ 248 mil por ano (13 salários). Isso dá, pela cotação de sexta-feira, US$ 93,5 mil.
Um juiz da Suprema Corte dos EUA ganha entre US$ 150 e 200 mil ano, podendo portanto receber o dobro do que o ?colega? brasileiro. Mas é preciso colocar os números em proporções.
Considerando o sistema de paridade de poder de compra, utilizado para as comparações entre países, a renda per capita no Brasil é de US$ 7.600/ano, contra US$ 37.800 nos EUA.
Assim, o juiz brasileiro ganha o equivalente a 12 vezes a renda per capita nacional. O americano, 5,3 vezes, tomando pelo teto.
A renda per capita americana é cinco vezes maior que a brasileira. Por esse critério, repetindo o padrão de distribuição, o juiz do Supremo no Brasil deveria ganhar 40 mil dólares/ano (R$ 106 mil anuais ou pouco mais de 8 mil por mês). Ou, o juiz americano deveria ganhar uns 450 mil dólares, mas isso não é problema nosso.
Acrescente-se que, além do salário, o magistrado brasileiro tem direito também a apartamento e automóvel Omega australiano com motorista, entre outras vantagens indiretas.
Em resumo, os salários mais elevados do funcionalismo público repetem a estrutura da muito desigual distribuição de renda no Brasil. E se isso for verdade, não são os juízes nem os parlamentares que precisam de reajuste, mas os servidores públicos da base da pirâmide, em geral o pessoal que está ali na ponta do serviço, policiando ruas, atendendo nos hospitais e dando aulas.
Parece simples, não é mesmo? Ou será que nos escapa algo? Publicado em O Estado de S.Paulo, 7 de março de 2005