. Balanço O presidente Lula tem razão quando diz que o esforço de sua administração no primeiro ano concentrou-se no combate à crise econômica. Exagera quando acrescenta que a crise foi “uma das mais graves da história republicana”, mas sem dúvida a coisa estava preta e exigia medidas duras. Foram tomadas – e está aqui o maior mérito desses doze meses. Com juros na lua, restrição ao crédito e uma inédita contenção dos gastos públicos – pela primeira vez em muitos anos a administração federal reduziu suas despesas, em termos reais – o governo Lula trouxe uma inflação que era de 3% ao mês (ou 40% se anualizada) para os 9% com que deve fechar 2003. (E não 8%, como disse o presidente no discurso da última quinta, mas isso é detalhe). O resto veio de tabela – a queda nos juros, no dólar e no risco Brasil e alta na Bovepa. Havia, portanto, uma “herança maldita”, mas ela não foi construída apenas pelo governo FHC. Na verdade, este nem foi seu principal fator. A responsabilidade maior de FHC estava no tamanho da relação entre a dívida pública líquida e o Produto Interno Bruto, o principal indicador de solvência de um país. Chegou às cercanias do 60% – um nível perigoso. E ainda que essa dívida pudesse ser administrada, como foi, há uma vulnerabilidade implícita aí. Estando no limite da linha de água, qualquer marola afunda o barco. Por que a dívida aumentou tanto no governo FHC? Primeiro fator: no primeiro mandato, não houve austeridade fiscal. Gastou-se mais do que se arrecadava. Só no final de 1998, com o tremendo susto provocado pela crise da Rússia, o Brasil começou a fazer superávit primário, a economia nos gastos correntes e de investimentos para pagar a conta de juros. Outro fator de alta da dívida foram os juros muito elevados para atrair investimentos externos e assim sustentar a cotação do real em relação ao dólar, isso até janeiro de 99. E finalmente, o terceiro fator foi retirar do armário vários esqueletos fiscais, déficits, buracos nas contas públicas que permaneciam escondidos. Entre esses esqueletos, as dívidas dos bancos públicos, federais e estaduais, dos governos estaduais, das estatais, e por aí foi. Assim, em boa parte ao menos, a dívida foi o preço pago para conquistar a estabilidade. Um estudo do ex-diretor do Banco Central Ilam Goldfajn, e muito citado pelo pessoal do Ministério da Fazenda, mostra que se o governo FHC tivesse mantido superávit primário de 3,5% do PIB desde seu primeiro dia, relação dívida/PIB ficaria em confortáveis 40%, mesmo com todos os demais eventos. São águas passadas. O certo é que, iniciada a campanha eleitoral de 2002, a relação dívida/PIB era de 54%, controlada, administrada, mas em um nível perigoso. (Não pode passar dos 50%, é a tese hoje aceita). E aí o fator Lula/PT fez o resto do estrago. Quando Lula tomou a dianteira num ritmo que já parecia imbatível, todos foram dar uma olhada nos documentos do PT e o que encontraram era perturbador. Propunha-se uma política econômica chamada de “nacional-desenvolvimentista”, a partir de uma ruptura com o FMI e o sistema financeiro, com reestatizações e forte aumento do gasto público, sem superávit primário, porque se dizia que não era prioritário pagar juros aos especuladores. Sugeria-se o calote. (O leitor encontrará detalhada análise desses documentos, “Por um novo nacional-desenvolvimentismo” e “Ruptura necessária”, em meu site, www.sardenberg.com.br, seção arquivo/política econômica, que reúne artigos aqui publicados). Vem aí um novo Hugo Chavez, tal foi a impressão que se formou. E os investidores agiram. Secou o financiamento para o Brasil, os juros foram às alturas (em dólar, passaram de 4% ao ano para quase 35%), o pessoal tirou dinheiro do país, pararam os investimentos. A Bolsa despencou abaixo dos 9 mil pontos, o dólar foi a R$ 4,00 e o risco Brasil subiu de 600 para 2.400 pontos, e a relação dívia/PIB passou dos 60%. Era o cenário de um governo Lula ruim. Essa foi a fonte principal da “herança maldita”. Tanto é verdade, que essa expectativa dissolveu-se na medida em que Lula deu sinais de que a tal política “nacional-desenvolvimentista” era uma idéia morta. Foram sinais muito fortes, entre os quais a visita de Lula ao presidente FHC quando este assinou o acordo com o FMI que impediu a quebradeira brasileira. Lula endossou o acordo e logo soltou a Carta ao Povo Brasileiro, em que se compromnetia com política econômica clássica, austera, incluindo o superávit primário. No começo, pouca gente acreditou, curiosamente tanto à direita quanto à esquerda. Pessoal dos dois lados desconfiou que era manobra para acalmar e atrair os eleitores do centro. Assim, quando Lula, eleito, comecou a praticar a política clássica, já clara na definição dos membros de sua equipe econômica, a esquerda petista tomou-se de indignação. E o investidores voltaram alegremente aos negócios com o Brasil. O resto é história conhecida. Hoje, a crise está inteiramente debelada. Lula tem razão ao dizer que passou um ano para livrar-se da herança. O que não admite, por razões óbvias, é a triste ironia: passou todo esse tempo para desfazer uma expectativa armada com base em propostas que ele mesmo assumia antes. Tudo considerado, o Brasil está mais ou menos no ponto em que estava no início de 2002 e no qual permaneceria se a conversão do PT tivesse ocorrido antes do processo eleitoral. Claro, a diferença hoje é que a crise e a política para combatê-la deixaram a sequela da recessão, com queda de renda e alta do desemprego. De todo modo, é como se o governo Lula começasse agora. Com a desvantagem dos efeitos da crise, mas com a vantagem do ajuste das contas externas e por ter avançado nas reformas, especialmente da Previdência. Estas foram outro mérito expressivo. Como diz Lula, ele conseguiu o que outros presidentes não conseguiram. Mas deveria acrescentar que conseguiu porque a oposição de hoje foi amistosa e deu os votos necessários para aprovar as reformas, ao contrário do que fez o PT quando era oposição. Parece, portanto, que 2003 foi mesmo um ano perdido. E talvez inutilmente perdido. Se os radicais tivessem sido expulsos lá atrás . . O que é notícia? Do presidente Lula, no discurso de quinta passada: “Aprendi uma coisa; notícia é tudo aquilo que nós não queremos que seja publicado, o resto é publicidade”. Não disse com quem aprendeu. Mas a frase original é de um editor do Times de Londres, no final do século 19. Dizia ele:“Notícia é tudo aquilo que alguém não quer ver publicada. O resto é propaganda”. Publicado em O Estado de S.Paulo, 22 de dezembro de 2003
QUEM DEIXOU A HERANÇA MALDITA?
- Post published:9 de abril de 2007
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