POR QUE OS BRANCOS NÃO PODEM?

Os emergentes, os mestiços, fizeram os sacrifícios para ajustar suas economias. Por que os europeus não podem?

Países brancos não quebram, escreveu certa vez o economista Paul Krugman, Premio Nobel. Referia-se então às crises dos emergentes – final dos anos 90 – para observar que o mercado, as instituições internacionais, como o FMI, e os governos dos países desenvolvidos exigiam do Terceiro Mundo padrões de comportamento econômico mais rigorosos do que eles próprios seguiam. Ou seja, certos pecados só eram pecados no mundo emergente, mestiço. Deficits e dividas considerados inaceitáveis deste lado do mundo eram tranquilamente tolerados entre os brancos. Algo assim, diziam eles: nós podemos dever porque somos confiáveis, já vocês, ao sul?
Os recentes acontecimentos na Europa mostram que a história mudou. Ou a percepção dela. O fato é que países brancos estão quebrando ou entraram na alça de mira dos mercados, acusados dos mesmos pecados dos emergentes de ontem, déficits e dívidas acima do limite da responsabilidade. Restaurou-se a igualdade, certo?
Em parte. Eles continuam se considerando brancos, diferentes, na hora de definir as políticas de ajuste. De uns tempos para cá, mesmo analistas mais conservadores engrossam a tese segundo a qual governos democráticos, os da Europa, não têm a capacidade (nem o direito, dizem muitos) de levar suas populações a um esforço de reduzir o padrão de vida para adequá-lo aos recursos disponíveis. Ajustes muito dolorosos não são admissíveis em democracias, quando o povo tem o que dizer e não apenas os economistas ou tecnocratas em geral. Chegam a dizer que esse tipo de ajuste recessivo não funciona.
Ou seja, os europeus não podem fazer sacrifícios mais pesados para ajustar suas economias.
Ora, por que não podem? E de onde tiraram que isso não funciona?
A história recente tem variados exemplos de sacrifícios bem sucedidos. Querem um exemplo? Não precisamos ir longe: o Brasil, tanto sob FHC quanto sob o governo Lula nos seus primeiros anos. No lançamento do Plano Real, o Brasil não tinha “apenas” uma super-inflação. Exibia também contas públicas em estado lastimável (com dívida e déficit elevados e sem controle), uma dívida externa não financiável, sistema de aposentadoria inviável, oligopóplios estatais atrasados e corruptos, bancos estatais quebrados, mercados fechados, ineficiência geral.
No quesito dívida, isso que acontece com a Grécia – não ter dinheiro para pagar seus compromissos externos- já aconteceu com o Brasil, México, Coréia do Sul, Rússia, Argentina. Lembram-se dos pacotes da era FHC? Eram programas de corte de gastos e aumento de impostos para quê? Fazer caixa para pagar prestações da dívida.
Lembram-se do início do governo Lula? Aumentou o superávit primário – fez o quase o dobro do “neoliberal” FHC – para pagar juros e, assim, reduzir o endividamento público. Isso mesmo, segurou gastos com educação e saúde, por exemplo, para pagar juros. Só porque o mercado exigia?
Claro que o mercado estava cobrando juros cada vez mais caros para financiar o governo brasileiro, mas não por uma bronca pessoal. Simplesmente porque a dívida brasileira caminhava para um ponto em que não seria viável. E o Brasil, não se pode esquecer, já tinha dado alguns calotes.
O que acontece hoje na Europa? A mesma coisa: os mercados cobram juros cada vez mais caros porque desconfiam da capacidade dos governos em mantê-las em dia.
Qual a receita? Responsabilidade fiscal, superávit primário – o que fizeram praticamente todos os países relevantes do mundo emergente. Claro que cada país tem seus aspectos próprios, mas não há como escapar dessa receita global.
E, sim, o mundo emergente, Brasil incluído, amargou anos de crescimento baixo ou mesmo de recessão, para fazer esse ajuste. Mais ainda. Reforma da previdência? Já fizemos, não uma mas pelo menos duas aqui no Brasil, no setor privado INSS) e no público. Nos dois casos, ficou mais difícil para os trabalhadores, que passaram a contribuir mais e ter que trabalhar mais antes para adquirir o direito à aposentadoria. Sim, as duas reformas estão incompletas, o déficit previdenciário ainda é elevado, mas muita coisa foi feita – fator previdenciário, contribuição dos funcionários públicos – e a presidente Dilma está pressionando pela votação da lei que cria o fundo de aposentadoria dos funcionários públicos.
Privatizações? Foram feitas amplamente neste lado do mundo. Redução do número de funcionários públicos e de estatais? Foi feito.
Reformas econômicas, abertura da economia? Idem. Tudo com sacrifício, lutas políticas, greves, pancadarias. E em boa parte dos casos, com regimes democráticos.
Dia desses, a chanceler alemã, Angela Merckel, disse que os países europeus não têm “apenas” um problema de dívida pública, de modo que “apenas” o socorro financeiro não funciona. Mostrou que os países europeus precisam de reformas estruturais para recuperar competitividade e capacidade de crescimento. O que seriam essas reformas? Olhem para a história recente do Brasil e dos emergentes – e terão a resposta.
A presidente Dilma tem dado um conselho diferente nos palcos internacionais. Ela tem dito que “ajustes recessivos” não funcionam e que os países precisam de políticas de estímulo ao crescimento, como foi feito no Brasil na crise de 2008/09. Equivocada.
Por que o governo Lula pode expandir os gastos em 2008? Justamente porque a dívida pública havia estado em queda por anos a fio, seu nível era relativamente baixo e o governo vinha fazendo superávits primários há dez anos seguidos. Pode gastar porque havia feito o ajuste antes.
Mas como a presidente e os economistas desenvolvimentistas, por ideologia, se recusam a admitir o fato de que o ajuste e as reformas funcionaram, pulam essa parte da história e, curiosamente, acabam endossando a tese de que os brancos europeus não podem fazer sacrifícios.

Publicado em O Globo, 24 de novembro de 2011

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