Imagine a situação: uma mulher desce de um carro e caminha em direção a uma clínica de abortos legal. Nesse trajeto até a clínica, na calçada,
portanto um espaço público, ela pode ser abordada por manifestantes anti-aborto que tentarão fazê-la mudar de ideia? Sim, pode, decidiu a Corte, por unanimidade: a Primeira Emenda à Constituição garante a livre manifestação dos militantes anti-aborto.
Com isso, caiu uma lei do estado de Massachussets, de 2007, que obrigava aqueles militantes a se colocarem a uma distância de 11 metros da entrada de tais clínicas. Para organizar a situação, faixas amarelas foram desenhadas de modo a limitar o espaço livre de manifestações. Têm que se apagadas.
Caso encerrado? Nada disso. O governador de Massachussets, Deval Patrick, reagiu imediatamente e, ainda na semana passada, conseguiu que os deputados estaduais aprovassem outra lei determinando o seguinte: a polícia pode ordenar que manifestantes se afastem da entrada da clínica se eles estiverem fisicamente impedindo a entrada de eventuais pacientes; nessa situação, a polícia pode determinar que os manifestantes se afastem a 8 metros dali, por oito horas.
Trata-se do outro lado da história: a mulher que deseja fazer um aborto tem o direito de entrar livre e pacificamente numa clínica que a atenda. Ela tem o direito de não querer ouvir outras opiniões, uma vez que já terá tomado sua decisão.
Tudo considerado, as duas partes estão se considerando vitoriosas. O movimento anti-aborto, conservador, entende que a decisão da Corte restabeleceu o direito de se falar diretamente com as mulheres, uma a uma, na porta de cada clínica. O grupo pro-aborto, liberal, acha que a Corte vetou especificamente a lei dos 11 metros, mas não qualquer mecanismo que imponha limites às manifestações.
De fato, o presidente da Corte, John Roberts, comentando a decisão, observou que a zona livre de 11 metros era excessiva, afastando manifestantes legítimos de uma área pública muito larga. Quer dizer que uma área menor pode?
Pode, interpretam analistas, mas com ressalva: os manifestantes só podem ser afastados se estiverem se comportando de maneira agressiva e bloqueando a entrada da clínica. Se for assim, cabe à polícia interpretar, em cada situação específica, se o comportamento os manifestantes é ou não um bloqueio ofensivo.
O que complica ainda mais a situação. Pode apostar: um lado vai acusar a polícia de ser excessivamente complacente com os manifestantes; o outro, de excesso de violência. E aí vai parar na Justiça, claro, que decidirá se processa civis eventualmente detidos ou se processa os policiais, neste caso ou por abuso de autoridade ou falta de autoridade para garantir a ordem e o direito dos não-manifestantes.
Não é fácil. Por isso mesmo, o leitor já percebeu por que estamos tratando disso: aqui no Brasil temos excesso de manifestações e absoluta falta de regras ou falta de meios e de disposição para cumpri-las, quando são fixadas. Mais que isso: falta um debate mais qualificado e mais intenso. Ia dizer também menos ideológico, mas é impossível neste caso. Liberdade e ordem pública, liberais e conservadores, direito individual e o direito do outro, o indivíduo e sociedade – eis as eternas questões.
Mas além de ser uma questão complexa em qualquer democracia, há entre nós um bloqueio político/eleitoral. O pessoal foge de escolhas concretas, fica no princípio geral que não compromete, mas também não resolve as diferentes situações.
Vamos falar francamente: excetuando as minorias que querem subverter a ordem capitalista, somos todos a favor da livre manifestação das ideias e também achamos que a ordem pública deve ser mantida. Ok. Mas uma manifestação pode bloquear a entrada de um hospital ou de uma escola ou de uma repartição que atenda o público? O grevista pode tentar convencer o não-grevista? E se o não-grevista não quiser ouvir? A autoridade pública, democraticamente eleita, pode vetar manifestações em determinadas áreas da cidade ou em determinados horários? É livre o bloqueio do trânsito, como parecer ser por aqui? O grupo político tem que comunicar previamente data e trajeto da manifestação ou pode sair por aí? A polícia pode bloquear um grupo de mascarados que se aproxima de um banco, uma loja ou um prédio público? Pode prender por suspeita de que haverá um saque ou só pode agir depois que o saque começa? Aliás, o que caracteriza uma manifestação? (A reunião de duas ou mais pessoas, diz a Corte americana).
Resumo da ópera: a lei e as cortes, democraticamente, precisam dizer concretamente o que pode e o que não pode.