O PROBLEMA ESTÁ NAS CONTAS INTERNAS

. A outra vulnerabilidade Todos os candidatos e, além deles, um amplo grupo de analistas colocam como questão central da economia brasileira a vulnerabilidade externa. Simplificando, isso aí quer dizer que o país tem um déficit em suas inúmeras transações com o exterior (exportações e importações, viagens internacionais, remessa de lucros e dividendos, etc.) Além disso, há um estoque de dívida externa a servir. Empréstimos e financiamentos tomados no exterior, pelo governo ou por empresas privadas, cujos juros e amortizações vão vencendo ao longo do ano. Tudo somado e diminuído, a economia brasileira, por meio do governo ou das empresas, precisa todo ano receber uma determinada quantidade de dólares do exterior. Quanto? US$ 50 bilhões – esse o número que se tornou referência de uns tempos para cá. É muito dinheiro. Como se arranja esse dinheiro? De duas maneiras principais: a recepção de investimentos diretos estrangeiros (IDE) ou a tomada de empréstimos, quer diretamente com bancos ou com instituições internacionais, como o FMI e o Banco Mundial, quer pela colocação de títulos (públicos ou privados). Eis como o país depende dos humores do mercado financeiro internacional e do estado da economia real no mundo, especialmente nos países desenvolvidos e, mas especialmente ainda, nos Estados Unidos. Quando as coisas vão bem, com as empresas e bancos internacionais faturando e lucrando, não falta dinheiro para os países emergentes, classificação na qual se inclui o Brasil. Quando as coisas pioram lá fora, o dinheiro torna-se escasso e mais caro, pois sobem as taxas de juros. Piora para todos os países emergentes, mas piora mais para aqueles que precisam de mais dólares, caso do Brasil. Na falta de dólares, o real se desvaloriza e isso cria inúmeros problemas: mais inflação (na medida em que encarece tudo que é importado ou tem componente importado); juros mais altos, de certo modo acompanhando a alta de juros no exterior; e dificuldades para quem deve em dólares, caso do governo e de empresas aqui instaladas. Imagine uma companhia de telecomunicações que tomou dólares emprestados para investir no Brasil, portanto, tendo faturamento em reais. Primeiro, as despesas financeiras aumentam com a alta dos juros internacionais. Além disso, precisará de mais reais para cada dólar a ser amortizado, dada a desvalorização da moeda local. Idem para o governo, o setor público, que tem dívida externa em dólar e dívida interna indexada ao dólar, mas fatura em reais (o dinheiro que recolhe de impostos). Quando há uma crise internacional – e têm sido tantas nos últimos anos – não há o que fazer lá fora. Mas se a gente aqui precisasse de menos dólares, não sofria tanto. Eis aí a história para se chegar à tese de redução da vulnerabilidade externa. O caminho para isso, obviamente, só pode ser uma combinação de aumento das receitas em dólares e diminuição das despesas. Ingrediente essencial disso é o aumento do superávit do comércio externo – e todos os candidatos gostam muito desse tema porque resulta numa agenda positiva: estímulo às exportações. Exportar é bom negócio interno. O mercado internacional é muito competitivo, de modo que só se consegue vender mercadorias de qualidade. Para produzi-las, são necessárias empresas modernas e eficientes, que investem mais, geram empregos e negócios no seu entorno – como são as companhias do agronegócio brasileiro, um caso de enorme sucesso. Assim, dar estímulo a essas empresas – financiamento e, sobretudo, redução de impostos – é uma boa proposta de campanha. Além disso, a lógica fecha: mais saldo comercial e de serviços, menor a vulnerabilidade externa, menor o risco Brasil e, pois, menores as taxas de juros internas. E juros menores representam mais crescimento, mais empregos, mais impostos. Essa é a esperança dos candidatos, especialmente de José Serra e Luís Inácio Lula da Silva. Acontece que a vulnerabilidade externa já está sendo reduzida de maneira muito forte. Aquele número dos US$ 50 bilhões não é bem assim. Já foi maior, US$ 64 bilhões em 1998, antes da desvalorização do real. Depois, começou a ajuste. Em 2000 e 2001, o país precisou captar (e captou sem problemas) entre US$ 56 e 58 bilhões. Neste ano, conforme dados mais recentes do Banco Central, esse valor cai para US$ 46 bilhões. Para o ano que vem, considerado o salto do superávit comercial e o fato de empresas e governo terem recomprado parte de sua dívida externa, a necessidade de captação deve ficar abaixo dos US$ 40 bilhões, podendo chegar a US$ 35 bilhões – número esse que representaria pouco mais da metade da vulnerabilidade de 1998. US$ 35 bilhões para captar continua sendo dinheiro. Mas é muito menos que antes e, além disso, tem o acordo com o FMI que prevê um financiamento de US$ 24 bilhões para o ano que vem. Ficariam faltando US$ 11 bilhões a serem obtidos com investimentos diretos e financiamentos. Em anos bons aqui e no mundo, como em 2000, o Brasil recebeu US$ 33 bilhões de investimento estrangeiro direto. Em um ano muito ruim como o atual, aqui e lá fora, esse investimento deve ficar nos US$ 16 bilhões. Ou seja, mesmo que 2003 fosse muito pior, não seria difícil completar os dólares para fechar as contas externas. Mas ainda assim a cotação do dólar dispara, os juros não caem, o risco Brasil chega a níveis absurdos. Um quadro muito pior do que aquele verificado quando o ajuste externo estava apenas começando. Qual o problema? É que existe outra vulnerabilidade, a interna, a das contas públicas. Por exemplo: o dinheiro do FMI está condicionado à manutenção de um superávit primário equivalente a 3,75% do Produto Interno Bruto. O governo obtém um superávit primário quando consegue economizar uma parte do dinheiro dos impostos depois de pagas as despesas com custeio e investimentos. O que sobra, o superávit, destina-se a pagar parte da conta de juros e impedir um crescimento explosivo da dívida pública. Sem isso, o setor público seria obrigado a tomar empréstimo novo para pagar toda a conta de juros de empréstimos antigos, o que é o caminho da insolvência. Em números redondos, fazer um superávit de 3,7% do PIB representa deixar de gastar algo como R$ 50 bilhões no ano. Deixar de gastar em salário mínimo da Previdência, em aposentadoria do funcionalismo, em obras e investimentos públicos – ou seja numa série de coisas que os candidatos andam prometendo. Em particular, a expectativa se dirige para Luís Inácio Lula da Silva, o favorito no momento. O candidato se comprometeu com o superávit primário até quando for necessário para equilibrar a dívida. Mas ocorre que, ao assumir, levará junto enormes e custosas demandas, como aumento do salário mínimo e dos salários e aposentadorias do funcionalismo, sempre apoiadas pelo PT. O próprio Lula se comprometeu a dobrar o valor real do mínimo em quatro anos. Como lidará com isso? Se não cumprir o superávit primário, perde os recursos do FMI. Se cumpri-lo, terá que passar o tempo todo dizendo não a seus companheiros. E logo no começo do ano se decide o reajuste do mínimo e dos salários do funcionalismo. Além do mais, olhando mais a longo prazo, por que o país precisa de dinheiro externo para fechar suas contas? Porque, aqui dentro, gasta mais do que ganha. E quem mais despoupa? Bingo, o setor público, que arrecada muito imposto e gasta tudo e mais um pouco. Ou seja, este segunda vulnerabilidade, a interna, pode ser mais perigosa, mesmo porque sua solução exige trabalho complexo, como a reforma dos gastos públicos, e trabalho sujo, porque é preciso reduzir certos gastos, antes da necessária redução de impostos. É aqui que se decidirá o jogo da política econômica do próximo governo. Publicado em O Estado de S.Paulo, 23/09/2002

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