O MÉTODO CHINÊS DE VIRAR À DIREITA

. Seta à esquerda Uma das melhores piadas políticas modernas vem da China. Diz que o presidente Jiang Zemin ia de motorista, conduzindo o grande líder Deng Xiao Ping, autor da modernização chinesa, quando, subitamente, topa com uma bifurcação perfeita, abrindo-se para cada lado, à esquerda e à direita, uma estrada igualzinha à outra; Zemin hesita, breca e pergunta a Deng qual o caminho a tomar; Deng não vacila: “Dê seta para a esquerda, vire à direita”. A piada nasceu em Beijing, quando Deng acelerava a implantação das reformas capitalistas. Tornou-se popular no Ocidente porque, desde meados dos anos 80, muitos partidos de esquerda, na Europa, sobretudo, adotaram o mesmo senso de direção. Já aconteceu por aqui no governo FHC e talvez aconteça de novo no governo Lula, até mais com mais frequência. Tome-se um caso da semana passada. Segundo o senador eleito pelo PT de São Paulo, Aloizio Mercadante, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva disse ao secretário-adjunto de Estado dos EUA, Otto Reich, que o Brasil vai jogar duro com os Estados Unidos no comércio internacional, tão duro quanto eles agem no defesa de seus interesses econômicos. Na mesma ocasião, porém, o senador disse que um objetivo do futuro governo será triplicar o fluxo de comércio com os EUA, hoje em torno dos US$ 30 bilhões/ano. Para isso, é necessário que o governo americano retire as barreiras que encarecem e/ou restringem as importações de produtos brasileiros. Como o governo Lula agirá na busca desse objetivo? Segundo o senador, pela negociação, troca de interesses. Por exemplo: os EUA precisam de álcool combustível, que estão usando cada vez mais, por razões ecológicas. Ora, a produção americana de álcool é ridícula, sendo que a brasileira é crescente e pode se expandir ainda mais. Mas o álcool brasileiro é taxado em 100% quando entra nos Estados Unidos. Reduzir esse imposto pode ser do interesse brasileiro e também do consumidor americano. Do lado de cá, lembrou o senador, há uma disseminada pirataria no comércio de CDs e DVDs, objeto de constante reclamação dos EUA, grandes produtores artísticos. Mas a pirataria afeta igualmente os artistas brasileiros e suas produtoras, cujas obras também são copiadas e vendidas por aí sem pagar imposto nem direito autoral. Portanto, combater a pirataria local – coisa que o governo Lula desde já promete fazer – atende aos interesses americanos e brasileiros, mais ou menos como a redução do imposto sobre importação do álcool. Eis aí, portanto, uma boa barganha. Seria também jogo duro? De todo modo, o ponto a notar nessa história é a ênfase colocada pelo senador no aumento do comércio com os EUA. Mais que isso, o senador discutiu com autoridades americanas que estiveram por aqui na semana passada, rasgando seda com Lula e seus colaboradores, a possibilidade de negociar um acordo de livre comércio direto com os EUA, como faz o Chile, por exemplo. Parece uma virada. Tradicionalmente, o pessoal do PT foi hostil aos EUA e a quase tudo que vem de lá. Rejeitava a Alca, por exemplo, por considerar uma iniciativa exclusivamente americana. Daí vem a proposta de ampliar o comércio externo brasileiro, dirigindo-o para outros países emergentes, supostamente solidários no cenário internacional, como Índia, China e África do Sul. Aí, depois da campanha e da vitória, vem essa idéia de dar atenção especial ao comércio com os EUA, o que, aliás, faz todo o sentido econômico. Para um país que precisa ampliar suas exportações, é óbvio que o negócio é vender para o maior mercado do mundo, coisa que fizeram todos os países que deram saltos em seu comércio internacional, como Japão, Coréia do Sul, China e México, pela ordem. Mas e o discurso anterior, como fica? Simples: o anúncio de jogo duro com os EUA é a seta à esquerda; a negociação comercial preferencial é a virada à direita. Querem outra? A denúncia do mercado financeiro internacional também é seta à esquerda; o pedido feito por Mercadante ao vice-secretário do Tesouro dos EUA, Keneth Dam, para que convença os bancos americanos a voltar a emprestar para o Brasil, é o vire à direita. E assim vai. Pode funcionar, acreditem. Na China, por exemplo, parece que funciona há muitos anos. Herdeiros de sabedoria milenar, os líderes chineses já criaram verdadeiras pérolas, como a de chamar a privatização de “devolver as empresas ao povo”. Há duas condições para esse esquema funcionar: a primeira, uma forte liderança, com credibilidade para levar o país a essas viradas; segunda, a obtenção de resultados, basicamente o crescimento econômico. Na China, a liderança vem da ditadura bem montada do Partido Comunista, que aliás acaba de aceitar a entrada dos novos empresários como militantes, prerrogativa antes reservada aos trabalhadores da cidade e do campo. Mas, atenção, não se autoriza a entrada de empresários (proprietários ou capitalistas), e sim de legítimos representantes de outros setores da produção. De todo modo, o que sustenta a ditadura, de fato, é o longo período de crescimento econômico. Lula tem liderança – e de qualidade superior, obtida nas urnas livres. Sua credibilidade, portanto, é infinitamente maior. Falta-lhe conseguir bons resultados econômicos, para o que depende, no início, de um choque de confiança, de modo a trazer de volta ao país o crédito internacional. O caminho inicial, portanto, está traçado. Muitas setas à esquerda – Fome Zero, jogo duro com os EUA, alguns ministérios periféricos para a esquerda – e virando à direita – superávit fiscal, acordo com o FMI, entendimento com Washington, restrição ao aumento do salário mínimo e do funcionalismo, reformas. Como a história se sairá por aqui? Publicado em O Estado de S.Paulo, 25/11/2002

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