O LIBERALISMO ESTARIA DE VOLTA?

. Triunfo liberal (1)     
Terá sido uma vitória liberal o esmagador ?não? no referendo sobre a proibição do comércio de armas? Há como argumentar que sim, que venceu a idéia segundo a qual a liberdade individual é o valor principal a ser protegido pela lei. No caso, a liberdade de comprar uma arma para defesa pessoal. Preferiu-se isso em vez de se transferir ao Estado a responsabilidade integral de defender a todos, igualmente.     
Esse debate se dá no terreno das escolhas entre liberdade individual e igualdade social, com sua variação principal, liberalismo versus socialismo (ou social democracia). Essa questão está presente em todos os debates sobre políticas públicas.     
Num regime liberal puro, não poderia haver previdência pública e obrigatória. Entender-se-ia que cada pessoa, sendo livre e responsável, saberia cuidar de sua vida, construir sua poupança e, pois, sua aposentadoria.     
O argumento contrário diz que a aposentadoria é um direito social,  universal e deve ser garantido pelo Estado, já que os mais pobres não teriam como realizá-lo. Assim, o governo toma uma parte dos rendimentos de cada trabalhador e a redistribui aos retirados. A idéia é fazer justiça social ? recolhendo contribuições maiores dos mais ricos, mas reduzindo as diferenças na hora de pagar as pensões, estabelecendo-se, por exemplo, um teto. Eis aí o Estado do Bem Estar Social construído pelos europeus.     
Idem para educação. No puro liberalismo, se diria que cada família é responsável pela educação de seus filhos. O governo pode até oferecer escolas, mas cabe a cada pai ou mãe escolher onde colocar as crianças para estudar. No socialismo, se diria que a educação é um direito de todos e dever do Estado, de modo que deve ser pública e gratuita. E obrigatória.     
Nessa mesma balada, a questão da segurança. Liberalismo: o cidadão  compra sua arma e com ela defende sua propriedade, sua família, sua liberdade, como diziam os revolucionários norte-americanos na luta contra os ingleses. Social democracia: o Estado deve cuidar da segurança de todos, inclusive para dar mais proteção aos pobres.     
No limite do liberalismo, o Estado quase desaparece. No limite do socialismo, desaparece o individuo, que só pode fazer o que o Estado permite.     
Na história dos povos, a coisa é meio-muzarela-meio-aliche. E, por aqui, freqüentemente avacalhada. Tome-se a previdência brasileira. É na linha social democrata ? obrigatória, pública ? mas termina concedendo pensões milionárias, que repetem, e às vezes pioram, a desigualdade de renda dos trabalhadores. Tome-se ainda o sistema educacional ? público, gratuito e, portanto, supostamente igualitário – mas que acaba levando os mais ricos às melhores universidades do governo.     
Trata-se de um tipo de Estado do Bem Estar Social só para quem pode. Por diversos meios, incluindo eleições, diversas elites assaltam o Estado e distribuem os benefícios à clientela especial. A questão política, portanto, se resolve nisso: quem vai conquistar o governo para atender sua turma.     
No caso brasileiro, como de muitos outros países, é preciso misturar a essa salada a cultura que leva as pessoas a buscar no Estado a solução para seu caso. Funciona claramente na questão da segurança. A alternativa à brasileira nunca foi a liberal. Pouquíssimas pessoas tiveram a idéia de comprar uma arma para garantir sua segurança, mesmo sendo ricas. O que as pessoas sempre quiseram era uma guarita da PM na porta de sua casa.     
Eis o xis do referendo. Em um país menor, menos urbano, mais simples na sua divisão social, os mais ricos e as elites não tiveram problema em manter o Estado a seu serviço. Há 40 anos, o ensino público, primário, secundário e superior, era de excelente qualidade. Mas havia vagas para poucos, suficientes apenas para a parte de cima da sociedade e para os que dominavam o poder político. E as guaritas protegiam os bairros bons.     
No Brasil de hoje isso se tornou impossível. O país cresceu, trouxe milhões de pessoas para a economia urbana, introduziu uma democracia de massas. Resultado: não cabe mais toda essa gente no Estado.     
Verdade que se tentou. A distribuição de benefícios previdenciários para milhões de trabalhadores que não contribuíram ou não contribuíram o suficiente foi ou não um modo de, em nome da justiça social, incluir mais gente no Estado?     
As cidades cresceram, os bairros se espalharam e assim foi preciso dividir a polícia com mais clientes. Há mais polícia hoje, mas ainda assim não dá. Idem para as escolas públicas: colocaram-se todas as crianças na escola, mas o ensino é ruim.     
O resultado é que hoje pagamos mais impostos e temos serviços piores. Como sair dessa? É nesse ambiente que se deu o referendo sobre o comércio de armas. Só que isso não ficou claro na campanha.     
O pessoal do ?sim? ? pela proibição do comércio de armas ? não tinha chance. Pediu que os cidadãos e a sociedade se desarmassem e deixassem que o Estado cuidasse de todos com justa igualdade. Quem poderia acreditar nisso? Primeiro, não é verdade que a sociedade esteja armada: pouquíssimas famílias têm armas em casa. A bandidagem está armada, mas não estava no referendo, claro. É verdade que a arma doméstica é causa de homicídios. O sujeito que enche a cara é muito mais perigoso se tem um 38 em casa. Mas este é um problema menor na questão geral da segurança pública no Brasil. Em resumo, tentaram vender o desarmamento doméstico por mais do que valia. E finalmente, quem acreditaria que o governo cuidaria de tudo quando a experiência diária dos cidadãos topa com falhas dos serviços públicos?     
O pessoal do ?não? foi menos incompetente. Vendeu uma mentira ? a de que os cidadãos, tendo direito à compra de armas, estão mais seguros, tese da chamada bancada da bala. Mas outra parte da campanha do ?não? contou uma verdade muito forte: o governo não está conseguindo fornecer a segurança. Este foi o ponto essencial. A mentira não pegou. Se tivesse sido aceita, a venda de armas deveria aumentar, na medida em que as pessoas, graças ao debate, se teriam convencido de que precisavam de uma arma. Não aconteceu.     
Por outro lado, na mídia, jornalistas e intelectuais, ainda que em minoria, brandiram o argumento liberal. A tese: o Estado já manda demais na gente e já toma dinheiro de mais; depois de me proibirem de comprar uma arma ? porque pode ameaçar o vizinho ? vão acabar me proibindo de comer bacon porque ameaça a saúde pública.  Isso fez todo sentido nas circunstâncias.     
Tudo considerado, a vitória do ?não? não foi um triunfo liberal à antiga. Não venceu a tese de que os indivíduos cuidam melhor de sua segurança com suas próprias armas. Mas venceu o argumento liberal quando se disse que o Estado brasileiro está grande demais e ineficiente demais.     
Só que isso ficou meio difuso. Se o debate tivesse sido mais claro, resultaria do referendo uma política de segurança a ser aplicada, no quadro de uma reforma do Estado, com as respectivas lideranças políticas.     
E não apareceu nada disso. Por que? É o tema do próximo artigo. Publicado em O Estado de S.Paulo, 31/outubro/2005

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