O jogo dos quatro maiores
Carlos Alberto Sardenberg
​A solução para os desequilíbrios financeiros globais é simples: os chineses, alemães e japoneses precisam exportar menos, poupar menos e consumir mais os americanos, em contrapartida, precisam consumir menos e poupar mais.
​Esse é o único meio de equilibrar as contas das quatro maiores economias do mundo. E isso feito, quase todo o problema global estará resolvido.
​Hoje, China, Alemanha e Japão vivem basicamente de exportação. E são superavitários nas suas relações com o resto do mundo. Em 2009, esses três países somados fizeram um superávit nas suas contas externas de US$ 572 bilhões. Em compensação, os EUA, importando e consumindo, fizeram um déficit de US$ 420 bilhões.
​Repararam certo: o superávit de uns é o déficit do outro. Durante bom tempo, a coisa funcionou, com os três superavitários (e muitos outros países) financiando a gastança dos americanos. Agora, porém, a situação parece ter chegado ao limite.
​China e Japão, especialmente, empilharam uma montanha de dólares de reservas(quase US$ 3,5 trilhões), enquanto o governo e as famílias americanas empilham dívidas. Uma hora o jogo tem que virar. Os americanos precisam começar a pagar suas contas e os outros precisam gastar.
​Simples, não é mesmo?
​Como sempre em economia, a teoria é fácil, a realização é difícil. No caso, os quatro países envolvidos precisam mudar seus modelos e suas culturas. E isso depende de políticas internas, a serem tomadas pelos governos locais. Como hoje não existe autoridade internacional com poder para impor soluções, a saída depende de um entendimento voluntário.
​Não será simples, nem rápido.
​Considerem a China. O país vem crescendo de modo espetacular desde a década de 80. Todo ano, milhões de chineses deixam a pobreza e ingressam na economia capitalista. Mas ingressam como as formigas: trabalho pesado e disciplinado, salário baixo e muita poupança (para pagar saúde, faculdade dos filhos e aposentadoria, que o governo não fornece).
​Acrescente-se a isso a moeda, o yuan, mantida fortemente desvalorizada, que deprime o salário real das famílias, e o quadro está completo. Sobra pouco para o consumo e a boa vida.
​Por outro lado, as empresas instaladas na China conseguem produzir a custos baixos. Gastam quase nada, por exemplo, com contribuições à previdência e seguridade social. Pagam menos impostos. O custo China é bem menor do que no Brasil, por exemplo. Mais a moeda desvalorizada, e os produtos chineses são competitivos no mundo todo.
​ Agora, porém, com uma economia que produzirá neste ano mercadorias e serviços no valor de mais de US$ 5 trilhões ? a segunda no mundo ? e com um país em boa parte já desenvolvido, o governo chinês pode perfeitamente dar algum refresco para sua gente.
​A receita: primeiro, valorizar a moeda, o que faz sentido, pois, como diz o muito competente e reputado economista Stanley Fischer, hoje presidente do BC de Israel, não é possível manter por tanto tempo uma economia forte com moeda fraca.
​A valorização já aumentaria o poder de compra local. A segunda medida seria permitir ou mesmo estimular aumentos salariais e melhoras as condições de trabalho: jornadas menores, adotar o fim de semana sábado/domingo, mais feriados, para que as pessoas tenham mais tempo para gastar.
​A terceira medida seria o governo providenciar mais seguridade social: instalar uma rede de proteção social, previdência e saúde públicas, para que as famílias não precisem poupar tanto.
​Tudo considerado, a China exportaria menos, mas o consumo local aumentaria, garantindo demanda para a produção. Está claro, porém, que seria necessário mudar algum perfil da produção, pois nem tudo que hoje é exportado seria adequado ao consumo local. Ou seja, companhias exportadoras fechariam ou teriam que mudar seus produtos.
​Como percebem, é uma mudança e tanto. O que assusta os dirigentes chineses, com razão. Se a coisa não funcionar, ou mesmo se demorar a funcionar, a China perde o ritmo de crescimento e isso certamente causaria instabilidade política. Sabemos disso: o povo aceita regimes autoritários quando a economia vai bem.
​Por isso, os dirigentes chineses estão dizendo que o crescimento do seu país, como está hoje, é bom para o mundo ? o que também é verdade. A China importa mais de US$ 1 trilhão ao ano, o que puxa muitos países, inclusive o Brasil.
​Mas também distribui conseqüências negativas ? e estas hoje começam a pesar mais que os benefícios. Na verdade, é muito provável que os chineses saibam que precisam mudar seu modelo ? inclusive porque a população começa a reclamar mais benefícios de uma sociedade capitalista. Mas querem fazer as mudanças muito lentamente ? enquanto o mundo quer mais pressa.
​O caso da Alemanha é diferente nas circunstâncias. A moeda é o euro ? que não está sob controle do governo alemão e está valorizada. A máquina exportadora alemã baseia-se em tecnologia, conhecimento, eficiência e … salários mais baixos.
​Isso mesmo. Quando começou a perder fábricas para outros países, especialmente do Leste Europeu, cujos custos eram bem mais baratos, a Alemanha conseguiu algo raro: um entendimento político, com a concordância dos principais sindicatos, para conter e, em muitos casos, reduzir salários, que ficaram praticamente congelados.
​Com isso, caiu o custo Alemanha, a competividade foi recuperada, a exportação está sólida.
​Ora, o que precisariam fazer hoje? O contrário: permitir ganhos salariais e facilitar o comércio e o consumo locais. Produzir mais para dentro do que para fora. Como os chineses, também os dirigentes alemães têm receio de mudar algo que funciona.
​O Japão já viveu do mesmo modelo que hoje sustenta a China. Depois enriqueceu, mas ainda vive mais da exportação, com tecnologia e sua moeda também se fortaleceu. Precisaria consumir mais.
​Quanto aos americanos, estão poupando mais por necessidade. A dívida já é uma corda no pescoço. Mas se os outros três não substituírem o consumo americano, simplesmente o mundo não volta a crescer.
​Parece exagero dizer que a coisa está centrada nesses quatro? Então considerem: os PIBs somados (números de 2009) de Estados Unidos (US$ 14,2 trilhões), China (5 tri), Japão (5 tri) e Alemanha (3,3 tri) formam praticamente a metade do produto mundial.
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Publicado em O Estado de S. Paulo, 15 de novembro de 2010